SOU MEU HÓSPEDE
Sou meu hóspede noturno
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
procuro ser tratado
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
não coleciono padeceres
nem os sarcasmos
que deixam marca
nem os sarcasmos
que deixam marca
sou tão-só
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
como hóspede
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca
POR QUE CANTAMOS
Se cada hora vem com sua
morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que
cantamos
se estamos longe como um
horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que
cantamos
cantamos porque o rio
está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
AMOR DE TARDE
É uma pena você não estar
comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
É uma pena você não estar
comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
É uma pena você não estar
comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.
•
Mario Benedetti nasceu a 14 de
setembro de 1920 em Paso de los Toros. Mudou-se para Montevidéu ainda em
criança e só deixou a cidade nas andanças pelo exílio – entre 1973 e 1985.
Escreveu vasta obra, incluindo, em sua maioria, livros de poesia. Morreu a 17
de maio de 2009.
* Traduções de Julio Luiz Ghelen
Nenhum comentário:
Postar um comentário