terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Três poemas de Ida Vitale




 
A PALAVRA
 
Expectantes palavras,
fabulosas em si,
promessas de sentidos possíveis,
airosas,
                aéreas,
                               airadas,
                                               ariadnas.
 
Um breve erro
torna-as ornamentais.
Sua indescritível objetividade
nos apaga.
 
 
RESÍDUO
 
Vida curta ou longa, tudo
o que vivemos se reduz
a um gris resíduo na memória.
 
Das antigas viagens ficam
as enigmáticas moedas
simulando falsos valores.
 
Da memória apenas sobe
um vago pó e um perfume
Talvez seja a poesia?
 
 
BORBOLETAS
 
Alto,
no pouco céu da rua,
duas borboletas amarelas brincam,
criam no serial do semáforo
um imprevisto espaço,
luz livre para o alto,
luz que ninguém viu,
a nada obriga.
Propõem a distração terrestre,
chamam para um lugar
― paralogismo ou paraíso? ― onde
certamente voltaríamos
para merecer um paraíso,
borboletas.
 
 
Ida Vitale nasceu no dia 2 de novembro de 1923, em Montevidéu. É poeta, tradutora, ensaísta e crítica literária integrante da chamada Geração de 45 no seu país natal. Por causa da ditadura militar exilou-se no México entre 1974 e 1984; ainda retornou ao Uruguai e em 1989 transferiu-se para os Estados Unidos, onde viveu até recentemente. Desde 2009, quando recebeu o Prêmio Octávio Paz, acumulou uma variedade de reconhecimentos, como Reina Sofía de Poesia Iberoamericana (2015) e o Prêmio Cervantes (2018). Entre os livros que publicou em poesia estão títulos como La luz de esta memoria (1949), Palabra dada (1953), Cada uno en su noche (1960), Oidor andante (1972), Jardín de sílice (1980), Parvo reino (1984), Sueños de la constancia (1988) e Procura de lo imposible (1998).
 
* Traduções de Pedro Fernandes de Oliveira Neto, publicadas inicialmente no Letras in.verso e re.verso.
 

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Três poemas de Vera Pedrosa

 


 
CORVOS
 
sete corvos gritaram entre guindastes
alarido ao sol poente
vozes ásperas
 
no silêncio da manhã
passei por prados colinas
cordeiros natos de há pouco
é mesmo assim
perguntei
corvos roucos entre guindastes
oxidadas engrenagens
pontes
ficaram para trás
pulsaram postes
é mesmo assim?
 
a sucessão de estacas verticais
e de dormentes
e o cinza o úmido
a estação de onde se chega ao cais
cheiro de mofo e sal
é cedo ainda
 
 
DÁDIVAS
 
abre-se um prisma
na mão estendida
irradia
o plano evoca vozes palmas cadências
risadas palavras gratas
 
 uma janela abre-se ao vento
abre-se ao perene dia
ao incêndio
ao desdobramento permanente
da coisa contínua
 
abre-se a janela a águas serenas
à voragem
a vertedouros e estuários
 
à distância descortina-se a planura
um campo ilimitado
que a aurora abre
 
 
CAVALO
 
no clarão
a figura de um cavalo
cor de cinza e claro
estardalhaço de papel crepom flores e fitas
e se impacienta
ânsia de voo
 
no planalto
o espaço é ilimitado
se não te estancas na borda
uma força talvez te aspire
ou tropeces talvez
em direção ao oco
 
já o cavalo
sabe o espaço
o espaço no galope
despenca pelos lados
enquanto o tempo
insaciável
predador
dispara
 
 
Vera Pedrosa nasceu no Rio de Janeiro em 1936. Formada em Filosofia, foi jornalista nos jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil, e dedicou boa parte de sua vida às atividades diplomáticas passando por países como a Espanha, Peru, Holanda, Dinamarca, Equador e França. Integrou a famosa antologia organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje, publicada em 1975 e que reuniu importantes nomes da poesia brasileira daquela geração. Na poesia destacou-se pelos livros Poemas (1964), Perspectiva Naturalis (1978), De onde voltamos o rio desce (1979) e A árvore aquela (2015). Vera Pedrosa morreu no dia 3 de fevereiro de 2021, no Rio de Janeiro.
 
 
 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Três poemas de Ada Negri

 


SEM NOME
 
Eu sou sem nome.— Eu sou a tosca filha
Do úmido pardieiro;
Plebe triste e danada por família,
Mas indômito é o fogo companheiro.
Segue meus passos maligno um duende
E ora um anjo adiante.
Galopa meu pensar e sobe e pende,
Como Mazeppa no cavalo arfante.
Enigma sou de amor e de sadismo,
De força e de doçura;
Atrai-me a treva do abismo,
Comove-me a criança e sua candura.
Se pela porta da água-furtada
O infortúnio entra, rio;
Rio se atacada ou enjeitada,
Sem alegrias e sem confortos, rio.
Mas pelos velhos tremendo fatigados,
Pelos sem pão, eu choro;
Pelo menino magro e esfomeado,
Por mil desconhecidas dores, choro.
E quando o pranto do peito me transborda,
Num canto estranho e ardente
A alma toda arranco corda a corda
Na melodia que à boca vem fremente.
De quem ouve não cuido e se covarde
Palor me fere e cinge,
Peito o destino de vez que não me atarde,
E o viperino fel já não me atinge.
 
 
O DOM
 
O dom supremo que dia após dia
e ano após ano esperei de ti, ó vida,
(e pelo qual, tu sabes, foi para mim doçura
mesmo o pranto) não veio: nem vem ainda.
A cada manhã que acorda digo: É hoje
a cada dia que finda no ocaso digo:
Será amanhã. Corre no entanto o rio
do meu sangue vermelho rumo à sua foz:
e quiçá o dom que podes dar, o único
que valha, ó vida, é este sangue: este
fluir secreto nas veias, e o bater
dos pulsos, e a luz vinda dos olhos; e te amar
unicamente porque és a vida.
 
 
ORAÇÃO

Faça-me igual, Senhor, àquelas folhas
moribundas, que vejo hoje no sol
tremer no mais alto ramo do olmo.
Tremem, sim, mas não de pena: é tão
límpido o sol e doce o desprender-se
do ramo, para assim reunir-se à terra.
Acendem-se na luz última, corações
prontos à dádiva; e a agonia, para elas,
tem a clemência de uma meiga aurora.
Faz que eu me solte do mais alto ramo
da minha vida assim, sem um lamento,
penetrada por Ti, come se pelo sol.
 
Ada Negri nasceu em Lodi a 3 de fevereiro de 1870. Estreou como poeta com a publicação de Fatalità, em 1892; o reconhecimento pela escrita deste livrou lhe favoreceu na nomeação para a escola normal em Milão. Até então, com o diploma de professora do ensino elementar trabalhava desde os dezoito anos como professora numa aldeia de Motta Visconti. Depois do primeiro livro vieram Tempeste (1896) e Estrela matutina (1921), obra mais reconhecida. Morreu a 11 de janeiro de 1945, em Milão.
 
* Traduções de Fabio Malavoglia
 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Três poemas de Edgar Allan Poe





Não fui, na infância, como os outros 
e nunca vi como outros viam. 
Minhas paixões eu não podia 
tirar de fonte igual à deles; 
e era outra a origem da tristeza, 
e era outro o canto, que acordava 
o coração para a alegria. 
Tudo o que amei, amei sozinho. 
Assim, na minha infância, na alba 
da tormentosa vida, ergueu-se, 
no bem, no mal, de cada abismo, 
a encadear-me, o meu mistério. 
Veio dos rios, veio da fonte, 
da rubra escarpa da montanha, 
do sol, que todo me envolvia 
em outonais clarões dourados; 
e dos relâmpagos vermelhos 
que o céu inteiro incendiavam; 
e do trovão, da tempestade, 
daquela nuvem que se alterava, 
só, no amplo azul do céu puríssimo, 
como um demônio, ante meus olhos
 
 
UM SONHO

Sonhei, entre visões da noite escura, 
com a alegria morta, mas meu sonho 
de vida e luz me despertou, tristonho, 
com o coração partido de amargura.

Ah! que não vale um sonho à luz do dia 
para aquele que os olhos traz cravados
nas coisas que o rodeiam e os desvia 
para tempos passados?

Aquele santo sonho, sonho santo, 
enquanto o mundo repelia o pária, 
deu-me o conforto, como luz de encanto 
a conduzir uma alma solitária.

E embora a luz, por entre a tempestade
e a noite, assim tremesse, tão distante,
que poderia haver de mais brilhante
no claro sol da estrela da Verdade?
 
 
VÉSPER

Era em pleno verão.
Andava a noite em meio.
E as estrelas, no seu revoluteio,
luziam desbotadas, ao clarão
maior da lua fria,
que, entre a turba dos astros que a servia,
dos céus vinha lançar
seu brilho sobre o mar.

Olhei por um instante
o seu sorriso enregelante,
para mim frio, tão frio...
e lá passou, qual fúnebre atavio,
uma nuvem, que em flocos se reparte.
Voltei-me então, a olhar-te,
Vésper altiva e nobre,
de esplendor que a distância não encobre,
e mais caro seu brigo me há de ser;
pois o prazer
é o que de mais esplêndido tu trazes
para o meu coração,
nas ondas que, no céu, à noite, fazes,
e é bem maior a minha admiração
por tua chama afastada
que por aquela luz, tão perto, mas gelada.
 
Edgar Allan Poe nasceu a 19 de janeiro de 1809, em Boston. Reconhecido por sua contística e pelo célebre poema “O corvo”, foi um dos nomes mais importantes da literatura romântica. Sua estreia na literatura se deu com a publicação de um livro de poesia, Tamerlane and Other Poems, em 1827. Neste gênero, além dos títulos citados, escreveu significativa obra, entre os quais se destacam The City in the Sea (1831), O verme vencedor (1837), Silence (1840), To Helen (1848) e Annabel Lee (1849). Na prosa, Poe se destacou ainda pelas reflexões que construiu sobre a composição poética. Morreu a 7 de outubro de 1849.
 
* Traduções de Oscar Mendes e Milton Amado.
 
 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Dois poemas de Rubem Braga



AO ESPELHO
 
Tu, que não foste belo nem perfeito,
Ora te vejo (e tu me vês) com tédio
E vã melancolia, contrafeito,
Como a um condenado sem remédio.
 
Evitas meu olhar inquiridor
Fugindo, aos meus dois olhos vermelhos,
Porque já te falece algum valor
Para enfrentar o tédio dos espelhos.
 
Ontem bebeste em demasia, certo,
Mas não foi, convenhamos, a primeira
Nem a milésima vez que hás bebido.
 
Volta portanto a cara, vê de perto
A cara, tua cara verdadeira,
Oh Braga envelhecido, envilecido.

(1957)
 
 
BILHETE PARA LOS ANGELES
 
Tu, que te chamas Vinícius
De Moraes, inda que mais
Próprio fora que Imorais
Quem te conhece chamara
Avis rara!
 
Tens uns olhos de menino
Doce, bonito e ladino
E és um calhordaço fino:
Só queres amor e ócio,
Capadócio!
 
Quando a viola ponteias
As damas cantando enleias
E as prendes em tuas teias ―
Tanto mal já fizeste,
Cafajeste!
 
Apesar do que, faz falta
Tua presença, que a malta
Do Rio pede em voz alta:
Deus te dê vida e saúde
Em Hollywood!
 
(1949)
 
Rubem Braga nasceu a 12 de janeiro de 1913 em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Sua dedicação à escrita de crônicas começou desde cedo e o fez reconhecido como o mais importante nome da literatura brasileira nesta forma criativa. É vasta sua obra e dela se destacam títulos como O conde e o passarinho, A borboleta amarela, Recado de primavera e Um cartão de Paris. Interessado leitor de poesia, organizou edições com a obra de Casimiro de Abreu e Luís de Camões. Designado poeta bissexto, integrou várias antologias, como a Antologia dos poetas contemporâneos; mais tarde toda essa produção foi organizada no Livro de versos. Morreu no dia 19 de dezembro de 1990, no Rio de Janeiro.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Dois poemas de Salette Tavares




AQUI ESTOU
 
Aqui estou, no encontro dos caminhos
no sítio onde os olhares se dobram de terror...
Quando a minha voz disse não e a vontade e o espelho
havia acordo e sonho e flores para abrir.
Quando as minhas mãos escorriam de ternura
havia liberdade e os meus pés descalços
recortavam em sombra a única lisura.
 
Que lindo o que eu sonhei, que paz e que mistério
que grande força sem lágrimas no mar...
Agora estou dorida, morreram-me os cabelos
nos dedos que pediam caiu uma agonia,
as cordas já cortadas tornaram a me ligar. 
Na noite que me seque eu quisera sorver
toda a ausência direta do possuir e do ter,
fugida na floresta escondida na giesta
morder aquela terra fecunda em que me sei. 
Sem luta, a navegar, um barco branco e meu
sem timoneiro nem rota marcando-me o destino
singrando sob a lua, bebendo o sol dos dias
tão só e o grande olhar de Deus,
deitado ao pé de mim.
 
Assim correr, ser livre, criar e ter prazer
aquele só prazer igual ao que já sou
uma lira, um canto, uma harmonia enfim
serena, bela, doce e sem violência louca. 
Idade duma rosa colhida na manhã
vibrando no calor as pétalas a abrir
surpresa vegetal da vida que se inflama
com o caule cortado e sem poder sorrir.
 
Quem livre me deixasse dormir na minha planta
este acordo supremo dos membros do amor,
sem traição, sem corte, e só aquele manso
sorver da terra a seiva para poder florir. 
Ai, mar em que me banho e que livre me deixas
miragem do meu ritmo, partida para além
meu doce só saber braços, pernas, seios, beijos,
e toda a maravilha de ser sem mais ninguém.
 
 
ESPELHO CEGO

Eu leio o meu destino nos jornais.
Eu vejo os Signos do Domingo nos chifres do Carneiro
e creio
no regaço em que me leva algum planeta
a jogar no firmamento.
 
Osíres, ou sol da noite, ou estrela da terra
a vida é essa
que se esculpe na alma do poeta,
em ronde bosse,
                               em corpo inteiro...
e as mãos cegas
são só para saber mais devagar.
Minha cintura dorida
                               adeus supremo sem beijo
enche-me o peito de fome
                geme silêncio o desejo.
Espreme-me frutas os braços
                               bebem-se vinho de março
grandes belos cabelos
                               com o vento no regaço
Alvorecer de um segredo
                               boca que a fruta pede
mar de ouro generoso
                               onde o meu barco se perde.
 
 
Salette Tavares nasceu no ano de 1922 em Moçambique. Fez seus estudos em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Lisboa. Participou nos primeiros cadernos de Poesia experimental. Sua obra marca um período importante desta forma na década de 1960 portuguesa ao lado de nomes como E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly, António Aragão, entre outros. Publicou títulos como Espelho cego (1957), Concerto em Mi Maior para clarinete e bateria (1964), Quadrada (1967) e Lex Icon (1971). Morreu em 1994.
 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Quatro poemas inéditos de João Cabral de Melo Neto

 


A BAUDELAIRE
 
Sempre me perguntei e pergunto:
como dos falsos paraísos
podias regressar aos poemas
tão recortados e precisos?
 
Talvez, diante da folha em branco
te olhava branco esse inimigo
que o homem leva no mais fundo
e o julga com o olhar mais frio.
 
Ele te levava a sujá-la,
a enodoá-la, até a cuspi-la,
além do que então tolerável.
Ele é que te dava essa azia
 
que lembra estômago vazio,
lembra fomes, sedes adiadas,
tudo o que dá a lucidez,
essencial, a quem fala em facas.
 
 
A MARIA LEONTINA
 
Tua mão fazia a pintura
com o que foge na música.
 
Fosses viva, pedir-te-ia
tua receite, que não dizias,
 
porque eras leve e calada
e a palavra te devia ser pesada,
 
a receite de teu fazer tênue,
sem apoio, no ar, extremo.
 
Como o equilibrista que sabe
andar entre o ar e a gravidade,
 
assim sabia tua mão
mover-se entre o sim e o não,
 
fazer-se servir com a delicadeza
além do mistério e das trombetas
 
fazendo ver aquele ouvir
musical, quase sem sentir.
 
 
RETRATO DE PICASSO VESTIDO DE CAÇADOR
 
Pintar, repintar, sempre em volta
da coisa: como buscando outra
(não é possível que haja coisa
que atingir se ele quer não possa).
 
Talvez um alvo nem exista
(mas mais vezes, não dá na vista).
Quem sabe é o ponto de partida
da caçada que quer, vazia?
 
Por mim, imaginar não posso
caça imune ao fuzil dos olhos,
a esse fuzil de duplo foco
que me aponta de suas fotos.
 
Um tal fuzil não poderia
errar, querendo-o, a pontaria.
Se atirava ao redor do que via,
é que caçar, não caça, visa.
 
 
O SUICÍDIO LIMPO
 
Poder comer com gesto claro!
O de alguém que diante da bacia,
como que um qualquer de mãos
se enxugasse da própria vida?
 
Nos nossos dias são capazes.
É outra a espécie dos suicidas.
Morrem em tragédia ou comédia.
São das famílias dos artistas.
 
O gesto de matar-se é o Gesto.
E no palco em que se executam,
muito embora pareça o tranquilo
partir-se para vilegiatura,
 
ele é o só gesto que perdura,
que conservarão as retinas,
que usadas de ver tantas mortes
nunca as veem como rotina.
 
João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro de 1920 no Recife. Publicou seu primeiro livro de poemas Pedra do sono em 1942; a partir de então seguiu-se títulos como O engenheiro (1945), O cão sem plumas (1950), O rio (1954), Quaderna (1960), A educação pela pedra (1966), Morte e vida severina e outros poemas em voz alta (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Agreste (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilla andando (1989), entre outros. Morreu no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro. 

* Estes poemas foram publicados na Poesia completa (Alfaguara, 2020).
 
 

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Os nomes da edição n.22 da Revista 7faces

 

Murilo Mendes, Museu Nacional de Roma, 1972.
Foto: Bruno Andreozzi

 

Chega online em breve a edição n.22 da revista 7faces. No dia 13 de agosto de 2020, data que marcou a passagem dos 45 anos sobre a morte de Murilo Mendes, destacamos em nossa página no Facebook que homenagearíamos a obra do poeta mineiro. Um dos nomes mais singulares do nosso modernismo, sua poética se destaca no interesse pelo cotidiano por vezes transmutado por um surrealismo, um simbolismo, ou um humor do Brasil provinciano.
 
Sobre a obra de Murilo Mendes este número reúne textos de Maria Domingas Ferreira de Sales, Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, Maria Laura Müller da Fonseca e Silva, Valmir de Souza, Filipe Amaral Rocha de Menezes, Gustavo Henrique de Souza Leão e Patrícia Aparecida Antonio.
 
Além dos ensaios que compõem esta edição, dois cadernos de poesia recebem os/ as poetas André Ribeiro, Angelita Guesser, Anne Mahin, Carlos Cardoso, Cristiana Pereira da Cunha, Daniel Mendes, Delalves Costa, Diogo Costa Leal, Fabio Pessanha, Francisca Maria Fernandes, Huggo Iora, Jeferson Barbosa, Lourenço Duarte, Mariana Godoy, Rodrigo Garcia Lopes, Sebastião Ribeiro e Wemerson Felipe Gomes.
 
Antes da conclusão de 2020 o n.22 da revista 7faces estará disponível online. Agradecemos o cuidado dos autores com envio de materiais para compor o andamento deste projeto. E convidamos os leitores a acompanharem todas as novidades sobre esta publicação e outras neste blog e nas nossas redes sociais (Facebook e Twitter).

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Dois poemas de Wilfred Owen

 


JOVEM SOLDADO MORTO
 
Não. Não é a morte
sem um Paraíso
de quem foi roubado
da vida e seu riso;
 
tão pouco o assassínio,
doce, duro, lento,
do mártir sorrindo
para o firmamento:
 
é este sorriso
vão como a ilusão,
tão débil, tão vão!
Na boca morta de um menino.
 
 
ANTÍFONA À MOCIDADE QUE VAI MORRER
 
Quais sinos dobrarão por estes que assim morrem
como animais? Só a ira horrenda dos canhões.
Só o rápido estrondar dos fuzis gaguejantes
deles dirá as apressadas orações.
Nenhum escárnio: nem prece ou dobre a finados;
nenhuma voz de dor, salvo os coros os coros
insanos e ásperos das balas soluçantes,
e clarins a chamar de tristonhos condados...
 
Que velas poderão sua morte ajudar?
Em seus olhos, e não entre as mãos de meninos,
a sacrossanta luz do adeus há de brilhar.
Terão na palidez de frontes femininas
a mortalha; no amor de almas pacientes flores,
e em cada anoitecer um abaixar de cortinas...
 
Wilfred Owen nasceu em Plas Wilmot, Shropshire, a 18 de março de 1893. Seu trabalho como poeta, constituído em grande parte por poemas marcados pela celebração à guerra, foi apresentado na antologia Poems, organizada por S. Sassoon, um de seus amigos mais próximos, dois anos depois da morte de Owen em combate na Batalha de la Sambre a 4 de novembro de 1918. 

* Traduções de Abgar Renault.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Três poemas de Louise Glück





VIOLETAS

Porque em nosso mundo
alguma coisa está sempre escondida,
pequena e branca,
pequena e o que chamas
pura, não lamentamos
como lamentas, caro
mestre sofredor; tu
não estás mais perdido
do que nós, sob 
o pilriteiro, o pilriteiro que sustenta
harmônicas bandejas de pérolas: o que
te trouxe entre nós
que te ensinaríamos, embora
ajoelhes e chores,
juntando tuas grandes mãos,
em toda a tua grandeza da alma,
que nunca há de morrer: pobre deus triste,
ou nunca tiveste uma
ou nunca perdeste uma.


FLORES SILVESTRES

O que estão dizendo? Que querem
vida eterna? Seus pensamentos são mesmo
tão arrebatadores assim? Com certeza
não olham para nós, não nos ouvem,
em sua pele
mancha de sol, pó
de botões-de-ouro: estou falando
como vocês, vocês que olham fixamente por entre
os talos de grama alta agitando
o pequeno guizo - Ó
alma! alma! Basta
olhar para dentro? Desdém
pela humanidade é uma coisa, mas por que
desprezar o vasto
campo, seu olhar elevando-se acima das nítidas cabeças
dos botões-de-ouro silvestres em direção a quê? Sua pobre
idéia de céu: ausência
de mudança. Melhor que a terra? Como
saberiam, se não estão nem
aqui nem lá, eretas entre nós?


A  PAPOULA VERMELHA

A grande façanha
é não ter
cabeça. Sentimentos:
ah, eu tenho; eles
me governam. Tenho
um senhor no céu
chamado sol, e me abro
para ele, mostrando
o fogo do meu coração, fogo
como sua presença.
O que poderia ser tal glória
senão um coração? Ah, irmãos e irmãs
alguma vez foram como eu, há muito tempo,
antes de serem humanos?
Permitiram-se
abrir alguma vez, vocês que jamais
voltariam a se abrir? Porque na verdade
falo agora
à maneira de vocês. Falo
porque estou aos pedaços.

Louise Glück nasceu a 22 de abril de 1943, em Nova York. Sua obra se dedica a iluminar aspectos do trauma, desejo e natureza. Frequentemente descrita como uma poeta autobiográfica; seu trabalho é conhecido por sua intensidade emocional e por frequentemente se ancorar no mito, na história ou natureza para pensar sobre experiências pessoais e a vida moderna. A autora acumula os mais importantes prêmios literários nos Estados Unidos, incluindo Prêmio Pulitzer e National Book Critics Circle Award. Em 2020 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

* Traduções de Maria Lúcia Milléo Martins.



terça-feira, 20 de outubro de 2020

Três poemas de Cruzeiro Seixas



UM BARCO SONHA COM OUTRO BARCO
oferece-lhe orquídeas de som
um túmulo gótico limos todo o mistério
lá onde a abóbada assenta sobre a coluna vertebral
que guarda palavras algemadas
e os passos dos peregrinos a caminho da ausência.
 
Estamos a um dia do fim de qualquer coisa.
Pela mão que guardo em todos os peitos
pelo contínuo marulhar na solidão na minha fronte
por esta maresia que vinda do sonho
sobe e sufoca
pela noite que se exprime no mais profundo de cada dia
ofereço-te a eternidade
como um trapo velho dentro de mim.
 
Todos os comboios atravessam o meu corpo
todos os diamantes se suicidam à minha porta
todas as mãos têm movimentos copiados do mar.
 
Ao meu lado sobre mim dentro de mim
como ao fim das tardes no inferno
o segredo que a sete chaves guardamos
passam-no agora as árvores em voz baixa uma às outras.
 
Oh meu amor o fim não existe tudo é recomeço
e tudo recomeça pelo fim.
Não esqueças esses momentos de transgressão
mais vida do que a vida
como o cavalo que corre dentro de si próprio
cego
até o infinito que não há.
 
 
A TUA BOCA ADORMECEU
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.
 
Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.
 
E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.
 
As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.
 
Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.
 
 
POEMA
 
Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.
 
Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.
 
Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.
 
Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.
 
Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.
 
Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.
 
Cruzeiro Seixas nasceu em Amadora a 3 de dezembro de 1920. Iniciou sua carreira aproximando-se do neorrealismo e depois aderiu ao surrealismo, compondo com nomes como Mário Cesariny a base fundamental deste movimento em Portugal. Autor de vasta obra que obre as artes plásticas em suas múltiplas manifestações e a poesia. Morreu a 8 de novembro de 2020, em Lisboa.
 
 

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Dois poemas de Edward Thomas




NÃO HÁ NADA COMO O SOL

Não há nada como sol à medida que o ano morre,
por mais gentil que possa ser este mundo assim criado,
para pedras e homens e animais e aves e moscas,
para todas as coisas que toca, excepto a neve,
seja no sopé da montanha ou na rua da cidade.
A parede a sul aqueceu-me: Novembro começou,
No entanto, nunca brilhou o sol tão belo quanto agora
enquanto os últimos abrunhos que ficaram no ramo
com centelhas da tempestade da manhã caem
porque o estorninho o sacode, assobiando o que
antes as andorinhas cantaram. Mas também não esqueci
que não há nada como o sol de Março,
como o de Abril, Julho ou Junho ou Maio,
ou dos grandes dias de Janeiro ou Fevereiro:
E Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro
têm dias iguais, todos diferentes de Novembro.
Em todos os dias do mês só eu tenho dito - 
Ou, se viver o suficiente, deverei dizer -
"Não há nada como o sol que brilha hoje"
Não há nada como o sol enquanto podemos viver.


ESSAS COISAS QUE OS POETAS DISSERAM

Essas coisas que os poetas disseram
sobre o amor pareciam-me verdade
quando amei e de forma igual
de amor e de poesia me alimentei.

Mas agora gostaria de saber
se o amor deles era o mesmo,
ou se o meu era o verdadeiro
e o deles outra erva adorável:

Pois não foi assim, certamente,
que, então ou depois, eu amei.
Decide entre nós meu bom
amor, antes que eu morra.

Assim, que um tenha amado
por esse mesmo argumento
seja claramente provado:
Eu, não amando, sou diferente.

Edward Thomas nasceu a 3 de março de 1878, em Londres. Sua obra se desenvolve primeiro pela crítica literária e mesmo pela prosa romanesca; nesta última forma escreveu um único livro. Na poesia, gênero que o tornou reconhecido também editou em vida um único trabalho, Six Poems, em 1916. Um ano antes havia decidido se alistar para ir ao front; na guerra, voluntariou-se para servir no estrangeiro. Foi enviado ao norte da França, onde morre em combate em Pas-de-Calais a 9 de abril de 1917.


* Traduções de Ricardo Marques.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A revista 7faces n.21

 



Desde o final de 2019, depois de quando assinalamos o centenário do escritor português Jorge de Sena, que pensamos neste número que agora se publica. A confissão pública desse interesse foi dada a partir do dia 9 de janeiro de 2020, data do aniversário de 100 anos de João Cabral de Melo Neto, quando abrimos uma chamada para o envio de textos. O trabalho final, acreditamos, busca alcançar a altura de um poeta que alçou a poesia escrita em língua portuguesa a outro patamar de expressão, forma e feitura.
 
A edição está organizada em quatro momentos distintos e dialogantes, compostos os três primeiros por quatro textos. A primeira seção conversa sobre aspectos interiores da poética de João Cabral de Melo Neto; a segunda, avança sobre temas, isto é, os textos aqui tratam sobre aspectos de maior espectro; e, a terceira, sobre os diálogos mantidos entre a poética cabralina e outras textualidades, quais sejam a pintura, o cinema e a dança. Integram esses momentos Antonio Carlos Secchin, Darío Gómez Sánchez, Edneia Rodrigues Ribeiro, Francisca Luciana Sousa da Silva, Francisco José Ramires, Iván Carvajal, Mariana Bastos, Rafaela Cardeal, Rafaela de Abreu Gomes, Rogério Almeida, Rosanne Bezerra de Araújo, Rosidelma Pereira Fraga e Adriana Helena Albano.
 
A quarta seção, “Memória”, reproduz uma resenha escrita por Antonio Candido ainda no calor da aparição do primeiro livro do poeta pernambucano ― Pedra do sono.
 
Acompanha esse material dois cadernos de poesia com textos de Alves Candeira, Antonio Carlos Sobrinho, Breno Almeida de Castro, Claudia Baeta Leal, Edwardo Silva, Francisco Romário Nunes, Gusthavo Gonçalves Roxo, Isabel de Carvalho, Julieta Simone, Lucas Grosso, Maíra Matos, Marina Magalhães, Nayara C. P. Valle, Paula Peregrina, Thássio Ferreira, Thiago Alexandre Tonussi e Vinicius Comoti.
 
Este número acolhe ainda o trabalho visual de Márcio Diegues ― da capa aos elementos internos ― em contínuo diálogo com elementos simbólicos do universo criativo de João Cabral de Melo Neto.
 
Para ler esta e outras edições, gratuitamente, basta acessar o site.
 
 

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Três poemas Louise Glück

 




1.

O sol põe-se por detrás das montanhas,
a terra arrefece.
Um estranho amarrou o cavalo a um castanheiro despido.
O cavalo está tranquilo – volta de súbito a cabeça
ao ouvir, na distância, o som do mar.

Faço aqui a minha cama por uma noite,
Estendo a manta mais pesada sobre a terra húmida.

O som do mar –
quando o cavalo volta a cabeça, ouço-o.

No caminho, entre os castanheiros despidos,
um pequeno cão segue o dono.

O pequeno cão – não era ele que costumava adiantar-se,
forçar a trela, como que para mostrar ao dono
aquilo que vislumbra além, além no futuro? –

o futuro, o caminho, chama-lhe o que quiseres.

Por detrás das árvores, ao poente, é como se um grande fogo
ardesse entre duas montanhas

de tal modo que a neve do mais alto precipício
parece, por momentos, arder também.

Escuta: no fim do caminho, o homem chama.
A voz dele faz-se agora muito estranha,
é a voz de alguém a chamar o que não vê.

Ele chama, uma e outra vez, entre os castanheiros escuros.
E o animal responde por fim,
indistintamente, de uma enorme distância,
como se isso que tememos
não fosse terrível.

Crepúsculo: o estranho desamarrou o cavalo.

O som do mar –
Agora uma lembrança apenas.
 

2.

O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.

3. 

Nos fins do outono uma rapariga deitou fogo
a um trigal. O outono

fora muito seco; o campo
ardeu como palha.

Depois não sobrou nada.
Se o atravessávamos, não víamos nada.

Nada havia para colher, para cheirar.
Os cavalos não compreendem –

Onde está o campo, parecem dizer.
Como tu ou eu a perguntar
onde está a nossa casa.

Ninguém sabe responder-lhes.
Não sobra nada;
resta-nos esperar, a bem do lavrador,
que o seguro pague.

É como perder um ano de vida.
Em que perderias um ano da tua vida?

Mais tarde regressas ao velho lugar –
só restam cinzas: negrume e vazio.

Pensas: como pude viver aqui?

Mas na altura era diferente,
mesmo no último verão. A terra agia
como se nada de mal pudesse acontecer-lhe.

Um único fósforo foi quanto bastou.
Mas no momento certo – teve de ser no momento certo.

O campo crestado, seco –
a morte já a postos
por assim dizer. 

 


Louise Glück nasceu a 22 de abril de 1943, em Nova York. Sua obra se dedica a iluminar aspectos do trauma, desejo e natureza. Frequentemente descrita como uma poeta autobiográfica; seu trabalho é conhecido por sua intensidade emocional e por frequentemente se ancorar no mito, na história ou natureza para pensar sobre experiências pessoais e a vida moderna. A autora acumula os mais importantes prêmios literários nos Estados Unidos, incluindo Prêmio Pulitzer e National Book Critics Circle Award. Em 2020 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

* Traduções de Rui Pires Cabral

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Cinco breves poemas de Sandro Penna

 



I
Talvez a juventude apenas seja isto:
sem arrependimento amar sempre os sentidos.

II
Este corpo que aperto (e me aperta)
tem um sabor de estrelas e de lodo.
E eu não sei quem agora me tinge
(profundíssimo jogo) de vermelho
as estrelas.

III
Era no cinema, onde as portas
se abrem e fecham continuamente.
Àquele rumor ela pensou
que ele voltasse
mas não voltou.

IV
Fazer do verde prado
um jogo proibido.
Já o tenho tentado.
Sem o ter conseguido.

V
“Poeta exclusivo do amor”
me chamaram. E era talvez certo.
Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores
da cidade longínqua
não são eles também amor?
Sob nuvens quentes
não são ainda o som
de um amor que arde
e não mais se afasta?

Sandro Penna nasceu a 12 de junho de 1906, em Perúgia; uma vez concluído os estudos básicos na escola comercial, foi para Roma, onde passou quase toda a sua vida. Foi colaborador de algumas revistas do seu tempo, como Letteratura e Il Fontispizio. Seu primeiro livro de poemas foi publicado em Florença, Poesie (1939); a estes se seguiram títulos como Appunti (1950) e Una strana gioia di vivere (1956), Croce e delizia (1958), Stranezze (1976). Morreu a 21 de janeiro de 1977.
 
* Traduções de David Mourão-Ferreira

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Dois poemas de Joaquim Namorado




POETA
 
A poesia é uma máquina
de produzir entusiasmo
e é preciso que os versos sejam verdadeiros
na vida dos poetas
como a tua mão erguida
sobre os anos futuros
quando o próprio bronze das estátuas se cobrir
do verdete do esquecimento
e das urtigas
entre as ruínas de um passado morto
e as pequenas plaquetes dos sentimentos pobres
dos líricos delírios
das doidas metáforas sem sentido
louvadas pela crítica
só tiverem o arqueológico encanto
de um cabelo de Ofélia.
 
Então
os teus versos estarão na primeira fila dos pioneiros
cobertos de cicatrizes
porque fizeram todo o caminho do tempo
multiplicados por milhões de vozes
pela alta potência dos alto-falantes
como uma bandeira erguida
sobre os anos futuros.
 
 
LIBERDADE
 
Quem marca uma fronteira
àquela nuvem
a asa que é a sua sombra
onde mora?
 
Sob as mordaças
calam-se as palavras
mas ninguém te cala
pensamento.
 
Quem manda à semente
não germines
ao fruto dela
que o não seja?
 
Amarram-se os pulsos
com algemas
mas ninguém te amarra
pensamento.
 
Quem impõe ao dia
que não nasça
ao sol que é a sua fonte
que não brilhe?
 
Fecham-se as janelas
com tapumes
mas ninguém te cega
pensamento.
 
Quem diz ao amor
é impossível
à lembrança que é seu laço
que o não seja?
 
Separam-se os amantes
na distância
ninguém te roubará
meu pensamento.
 
Joaquim Namorado nasceu a 30 de junho de 1914, em Alter do Chão, Alentejo, Portugal. Sua presença na cena literária em país está circunscrita no âmbito do Neorrealismo. Colaborou com as revistas Seara novaSol nascente e Vértice ― importantes periódicos os autores desta estética. Como poeta, estreou com Aviso à navegação (1941); este livro foi seguido de Incomodidade (1945) e A poesia necessária (1966). Morreu em Coimbra a 29 de dezembro de 1986.
 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Três poemas de Billy Collins





OS MORTOS

Os mortos estão sempre nos observando, dizem,
enquanto calçamos os sapatos ou fazemos um sanduíche,
olham pelo fundo de vidro dos barcos do céu
enquanto remam lentamente pela eternidade.

Veem o topo de nossas cabeças mexendo embaixo na terra,
e quando deitamos num campo ou sofá,
drogados talvez pelo zunido de uma tarde quente,
pensam que voltamos os olhos para eles,

o que os faz suspender os remos e calar
e esperar, como pais, que fechemos nossos olhos.


BUDAPESTE

Minha caneta se move pela página
como o focinho de um estranho animal
em forma de braço humano,
vestido na manga de um amplo suéter verde.

Eu o observo farejando o papel sem cessar,
atento como um forrageador qualquer que nada tem
em mente senão larvas e insetos
que lhe permitam viver mais um dia.

Quer apenas estar aqui amanhã,
vestido, talvez, na manga de uma camisa xadrez,
nariz enfiado na página,
escrevendo mais algumas linhas zelosas

enquanto olho pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade em que nunca estive.


CONVERSÃO

Gostaria de passar o dia na encosta
de uma montanha, ouvindo uma parábola
sobre uma ovelha perdida ou um parreiral arruinado.

Por meses minha única companheira seria esta história,
e quanto mais a contasse para mim mesmo,
mais claro tudo se tornaria.

Por fim, tiraria meu capacete de opiniões
e andaria pelas ruas da cidade
mostrando o cogumelo moreno e macio de minha nova cabeça.

Repetiria a história para pequenos grupos de homens,
fazendo desenhos na areia com um bastão.
Eu os deixaria murmurando em círculo.

E tarde da noite quando o vento frio encontrasse
as frestas de minha casa,
agitando o toco de vela perto de minha cama,

a língua da chama recitaria a história
e todas as sombras do meu eu antigo
tremeriam no teto e nas paredes de pedra.

Billy Collins nasceu a 22 de março de 1941, em Nova York. Autor de vasta obra literária distinguida em vários. Alguns dos livros são Questions About Angels (1991), Picnic, Lightning (1998), The Art of Drowning (1995), Ballistics (2008), Horoscopes for the Dead (2011). O segundo título citado foi o que o colocou em destaque nos círculos literários em país.

* Traduções de Maria Lúcia Milléo Martins.