terça-feira, 17 de março de 2020

Três poemas de Aleksandr Púchkin




O DEMÔNIO

Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
– rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora –
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas ideias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo – um devaneio,
a Inspiração – tolice imensa,
o amor e a liberdade – vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo.

(1823)


PARA ***

Recordo o luminoso instante
quando eu, tomado de surpresa,
te vi: súbita imagem, diante
de mim, da essência da beleza.

Desesperado e triste, a sós
no caos do mundo, ouvi durante
anos, em mim, a tua voz, 
vi, no meu sonho, teu semblante.

Passou o tempo; um vento atroz
varreu meu sonho ao seu talante,
e não ouvi mais tua voz,
deixei de ver o teu semblante.

Minha existência se esvaía
no exílio inóspito e incolor,
sem vida, lágrimas, poesia,
sem divindade nem amor.

Reapareceste e nesse instante
minha alma despertou surpresa;
revi, súbita imagem distante
de mim, a essência da beleza.

Meu peito, cheio de alegria,
bate de novo; há no interior
dele outra vez vida, poesia,
lágrimas, divindade, amor.

(1825)


O SEMEADOR 

O semeador saiu para semear


Eu semeador, deserto afora,
da liberdade, fui com mão
pura lançar, antes que a aurora
nascesse, o grão que revigora
no sulcos vis da escravidão.
Mas todo esforço foi em vão:
joguei vontade e tempo fora.

Pasce, pois eu te repudio,
ralé submissa e surda ao brio.
Libertar gado é faina ingrata,
pois gado se tosquia e mata.
Herda, por gerações a fio,
canga, chocalhos e chibata.

(1823)

Aleksandr Púchkin nasceu a 6 de junho de 1799 em Moscou. Sua estreia como poeta é ainda anos quinze anos e sua obra abarca diversas formas literárias. Destaca-se na literatura russa com o romance em versos Ievguêni Oniéguin. Morreu em duelo pelo francês Georges d’Anthès a 10 de fevereiro de 1837.

* Traduções de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.



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