O DEMÔNIO
Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
– rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora –
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas ideias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo – um devaneio,
a Inspiração – tolice imensa,
o amor e a liberdade – vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo.
(1823)
PARA ***
Recordo o
luminoso instante
quando eu,
tomado de surpresa,
te vi:
súbita imagem, diante
de mim, da
essência da beleza.
Desesperado
e triste, a sós
no caos do
mundo, ouvi durante
anos, em
mim, a tua voz,
vi, no meu
sonho, teu semblante.
Passou o
tempo; um vento atroz
varreu meu
sonho ao seu talante,
e não ouvi
mais tua voz,
deixei de
ver o teu semblante.
Minha
existência se esvaía
no exílio
inóspito e incolor,
sem vida,
lágrimas, poesia,
sem
divindade nem amor.
Reapareceste
e nesse instante
minha alma
despertou surpresa;
revi, súbita
imagem distante
de mim, a
essência da beleza.
Meu peito,
cheio de alegria,
bate de
novo; há no interior
dele outra
vez vida, poesia,
lágrimas,
divindade, amor.
(1825)
O SEMEADOR
O semeador saiu para semear
Eu semeador, deserto afora,
da liberdade, fui com mão
pura lançar, antes que a aurora
nascesse, o grão que revigora
no sulcos vis da escravidão.
Mas todo esforço foi em vão:
joguei vontade e tempo fora.
Pasce, pois eu te repudio,
ralé submissa e surda ao brio.
Libertar gado é faina ingrata,
pois gado se tosquia e mata.
Herda, por gerações a fio,
canga, chocalhos e chibata.
(1823)
O semeador saiu para semear
Eu semeador, deserto afora,
da liberdade, fui com mão
pura lançar, antes que a aurora
nascesse, o grão que revigora
no sulcos vis da escravidão.
Mas todo esforço foi em vão:
joguei vontade e tempo fora.
Pasce, pois eu te repudio,
ralé submissa e surda ao brio.
Libertar gado é faina ingrata,
pois gado se tosquia e mata.
Herda, por gerações a fio,
canga, chocalhos e chibata.
(1823)
•
Aleksandr
Púchkin nasceu a 6 de junho de 1799 em Moscou. Sua estreia como poeta é ainda
anos quinze anos e sua obra abarca diversas formas literárias. Destaca-se na
literatura russa com o romance em versos Ievguêni Oniéguin. Morreu em
duelo pelo francês Georges d’Anthès a 10 de fevereiro de 1837.
* Traduções
de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.
Nenhum comentário:
Postar um comentário