terça-feira, 24 de março de 2020

Três poemas de Raul de Carvalho





INTERROGAÇÃO

Ao Lagoa Henriques
Ao Carlos Amado


Estar morto
E ainda verde,
Como as primeiras folhas
Caídas no Outono,
Seré ese
O destino
Dos Poetas?


SOPRO!

Loucura? fome de beijos?
Diuturna alegoria
para a boca que se sabe
permanentemente fria.


PARA UM NOVO LIVRO DE CESÁRIO VERDE

Ao Sebastião Fonseca


Eles tomam cerveja, ambrosia, licores,
oleosos, sagrados como discos lunares.
Do azul da gravata ou da fímbria das ondas
retiram pensamentos ociosos e puros.

Recolhem-se de noite às oliveiras mansas
duma infância passada em louco desafio.
Ou então, nos portais, em amoroso convívio,
fingem que já não temem a noite nem o frio.

Já não têm família e mastigam, sozinhos,
um jovial jantar, colorido e minúsculo,
que haviam de comer, num domingo qualquer,
entre amigos cantando, entre mulheres amando.

Têm as caudas leves e subtis dum peixe,
têm um planeta adormecido e exangue,
têm os olhos líquidos, de asfódelo ou de cobre,
esses seres mitológicos que asfixiam a Terra.

São eles que caminham, irreais e aos tombos,
pondo nódoas de espanto por cima dos telhados.
Eles é que me deram o título deste poema:
A Cidade Está Cheia de Homens Assassinados.


Raul de Carvalho nasceu a 4 de setembro de 1920 em Alvito, Baixo Alentejo, Portugal. Sua obra foi reconhecida por Jorge de Sena entre os cem melhores poetas do século XX português; mais tarde, Eduardo Lourenço considera-o herdeiro de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). Foi colaborador com as revistas Távola Redonda e Cadernos de poesia. Com António Ramos Rosa e outros criadores fundou o período Árvore e foi co-diretor desta publicação de 1951 a 1953 – depois encerrada pela censura. Publicou 25 títulos, dentre eles, As sombras e as vozes (1949), Tautologia (1968), Tudo é visão (1970), Poemas inactuais (1971), A casa abandonada (1977), Duplo olhar (1978), Um mesmo livro (1984). Morreu a 3 de setembro de 1984 no Porto.  


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