terça-feira, 10 de março de 2020

Uma passagem de "O Guesa", de Sousândrade




O GUESA, O ZAC


Quando moveu-se d’indomável toiro.
O imenso umbror, que a massa tenebrosa
Passava devastando qual peloiro
E em terremoto as zonas dolorosas

Demolindo ― qual braços, denso o obscuro
Mugem vivos fatais demolidores...
― Vedes? ― Vejo... se não que do futuro.
Faz-se o eterno clarão. Quando, entre horrores,

Do Paraguai ouviu-se incompreensível.
Negro instrumento sanguinário e louco
Dos destinos: que soava a hora terrível
Da escravidão pensara-se bem pouco.

Ao México o gentil Maximiliano
Circunavegador d’Áustria novara:
Tendo conquista o ditador Solano,
Do áureo Brasil, América oscilara.

Em Cuba, a Espanha; o trono d’Inglaterra
No Canadá; nas costas do Pacífico
O ibério insulto ― ardia a Cordilheira;
E a sós, no Atlântico, Washington magnífico.

(E o Cidadão Americano à Espanha
Real bombardeará... Vereis o Atlântico
Em fogo, a pedir arras das campanhas
De tanta crueldade. Aos céus o cântico!)

E a tríplice aliança resistindo
A invasão barb’ra ao brasileiro sólio:
A justiça diríeis inquirindo...
A escrava esfinge? ou o livre capitólio?

Sublime aliança! Osório, Flores, Mitre,
Que altos fora do alcance das loucuras,
Trovejasse Humaitá tênebro alvitre,
Defendiam Américas futuras.

Sem vinganças dos seus morrer primeiro―
E só quando saíam do entrevero
Choravam pelos mortos, os soldados
Sempre do coração acompanhados.

Belas platinas águas! torvas distantes
Pela ondada de sangue que rolava.
Como a escola dos dias mais distantes
Da brasileira pátria em vós estava!

Sai do grêmio central um celerado
Que fanatiza a um povo delirando
Por ambição fatal: é condenado,
Revolução de luz justificando.

Sai do grêmio central um celerado
Que fanatiza a um povo e delirando
Por ambição fatal: é condenado,
Revolução de luz justificando.

O Imperador a Monroe ofendia
Pela segunda vez: para as princesas
Contratava d’Europa, dinastias
Sangue puro, consortes das realezas.

Americana humilhação: dos cumes
Os vulcões estalavam de ciúmes
Inquirindo dos céus a divindade,
Se nos Césares? se na Liberdade?

Mas, vindo a recolher um d’Orleans
C’roas dos heróis nossos, a centelha
Viu-se pátria acender e tão vermelha
Que muito perto creram-se as manhãs.

Ah! que são necessários longos anos
A formar o caráter das nações:
Desçam, do povo herdeiros, os tiranos,
Subam livres eleitos: ascensões

Dos novos mundos. Toda aprenda a terra
Do cristianismo a verdadeira glória
Encantadora ideal ― de paz a guerra
Que hinos combatem, lírios hão vitória.

Grandioso rio! abençoado clima
Aonde agora do Guesa os cantos voam
Mudando as cores do pampeiro à estima
Que os Andes têm e harmônicos ressoam.

Corda aeneal prendida nos dois pólos,
Vibrada aos dois oceanos. Quão risonhos
Stão das margens os cisnes alvos colos
Sobre as ondas mirando qual os sonhos!

Buenos Aires primeira independente,
À direita do estuário ao ocidente
Montevidéu, oriental cidade
Arrufos d’assas de oiro e liberdade ―

Ai! magnânima linda, separada
Sensitiva do império! ora saudada,
À União do sul, sensata irmã mais velha
Vereis voltar, que é da fronteira a estrela;

Cortesia gentil de Ituzaingo,
Bela rebelde que a família tua
Alembras, qual um dia de domingo,
A liberdade à escravidão que estua.

Que é do colosso corpo de gigante
Cabeça divinal; em cicatriz
Do sangue novo à jugular atlante
Riograndense! Quem contrário diz.

Lá vêm as trevas, mente! Auro-opalisa
Dos céus a face e branda e carinhosa:
Ao sussurro fluvial, platina brisa
Soprando, a alma de vós quando é saudosa!

Aqui nos deixam os amigos nossos,
Os chilenos leais. Como formosos,
Longes, os alvos lenços coruscantes,
Ascenam Margarida e os dois amantes!

Vós filhos seus, Henrique e Carolina,
Direis lá que por vós, a quem tanto amo,
Saudar venho a fronteira cisplatina
De quem aliança para os meus reclamo.

Terras de promissão, que ainda não entre...
Adeus! o coração que tem-vos dentro
E voltara, no amor já dilacera
Como quando bradava e mais sofrera,

Adeus! adeus! Meditativo e triste,
Ora as águas do Império (pouca esp’rança,
E muita crença) entrava. Nunca viste
Longes, coroas d’espuma que a bonança

Fizera à roda alvejam reluzentes
De um promontório onde há farol, na aurora
Branca de luz, separando-se as correntes?
E’, do passado e do futuro, esta hora.

E o futuro chegara. Vejo o encanto
Das rosas do Senado em Treze-Maio:
Se a aberto coração é doce o pranto,
Há daí o livre Novembral o raio.

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Mas, revoltam! dos novos libertos
Cai a glória?... estonteiam incertos...
... Está Guanabara ecoando trovões!

Crianças, mostram (por que não lutaram)
Que lutar querem, sabem. E olharam
À pátria ideal todas outras nações

Lhe abre a história o Dentista ao Setembro.
O primeiro; Deodoro ao Novembro:
E as duas cabeças de Dom Portugal

Cortam, e as repatriam ouvintes
Das mil forças das constituintes
Dos dois Benjamins Constants. Vede o mal.

Paraguai, pela aliança é remido:
Vencedores, amor ao vencido
Na terra é quem vence, favor por favor:

A toirada era a escola. Beberam
Glória: e à pátria voltando, tremeram
De ver-se ao inventário de um outro “senhor”,

Lá! foi lá que, os aliados lutando
Dias, noites, Deodoro viu, quando
Às sedes que os pútridos pântanos dão,

No embrenhado d’ingrata peleja
Viu, da espada que em chamas lampeja.
Da pátria futura brilhar a visão.

Deus, que às pátrias de Amarca há destinos,
Se homens vãos convertera a meninos
Que aos mitos sagrados adoram de um rei;

Ora aos fortes varões animara
Das virtudes que inatas mostrara
Aqui encontradas co’os oiros de lei.

Áureo cântico, às festas de glória
Vêm Chilenos; Cochrane há Vitória;
Fiscal ilha Atlântida: à corte imperial

Cai o leque das mãos da Princesa,
Que sorriu-te: oh! dolentes surpresas!
Das do Imperador caiu o cetro fatal!

Ventarola vingança... Os incréus
Cetros sendo dos seus reis, seus réus
Sodoma, Adam, Gomorra, Saboim, Segor,

Treme toda Pentápolis! Eia!
Desce, ó anjo dos céus! Incendeia!
Purifica a terra e no fogo e na dor!

E os do Império despojos doirados
Nem dos nobres são mais amparados,
Fantasmas da noite, se o dia aclarou

Nem justiça dos céus existira
Mas, existe e das sombras, luzira
Da trágica máscara e Deus trovejou.

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Há rumores (das nuvens a reza
Nessa noite que finda a realeza)
Da terra nos seios, nas sombras do mar:

Claras frontes, o sono despertam,
Cruzam vozes, que aos fortes libertam,
Que está a Inconfidência no espaço a bradar!

Dos verdugos, cristã descendente
Doce e humilde que suba a Regente
À posteridade coroada de luz:
Dos escravos o trono quebrando,
Se o dos livres s’está levantando
De ferro fundido co’as formas da Cruz.

Tiradentes, o grande Martírio
Bem honrada a quer cândido círio
Nas asas ardentes da Revolução.
Tal começa a nova era o Dentista,
Sagrada a boca à bela conquista
Dos dentes divinos. Ao leal Cidadão,

Forças d’armas, os povos uniam,
Ruas vivas as praças enchiam,
Co’o sol batalhões emulavam: sorrir
Do astro, sempre que ruem Bastilhas,
Vejam que há naturais maravilhas
À fronte dos homens em glória a luzir.

Nem um ódio: do Império se arreiam
Coronários; e laureais hasteiam
As republicanas bandeiras da Cruz
No verde e oiro da terra encravado
Celeste azul, branco, encarnado
União de “Libertas”, que às crenças conduz.

Vem o Império salvar, um ministro
De Dom Pedro... ao assombro e sinistro
Aponta o revólver ao peito do Herói:
Falha o fogo; ora, o ferem; cai ele:
Mas Deodor o cavalo propele
Bradando, “não o matem!” ... Sublime! Tal sói

Em tal guerra; e de um chefe tão nobre
A vitória sinala e descobre
O vulto irradiante, glorioso, imortal.
Bocaiúva a Ouro-Petro amparava,
Ante as tropas, Constant declarava,
Estar garantida a família imperial.

Toda a grande cidade à bela hora
Qual os mares espumam na aurora,
Ditosa elevada nova alma aclarou:
O horizonte vestindo de flores,
Cor nenhuma turbara a terrores
Os hinos brilhantes que a pátria entoou.

Ora, o sol de rubis sobre o ocaso
Despediu-se do Império, que o prazo
Vencera em seu posto. De noite se ouvia:
Que tranqüila repoise a cidade;
Batalhão velador, liberdade
Garante-lhe a paz. E o pregoeiro rugia:

“Ai do ousado que arrombe uma porta!”
De tal modo a família conforta
Brasílio novo Éden em seu despertar.
Já dos paços reais se apagaram
Todas luzes; já todos deixaram
Dom Pedro aos destinos. Que triste embarcar!

Noite: às sombras vapor “Alagoas”
Como “alaga” aproando a Lisboas,
Suicida! ao sol nado, a “aquarium” divisão,
Solta o rei, pomba branca céus mares
Livre a leda aninhou nos palmares
No espaço aos revôos qual pátria bênção.

Doce idílio. Eis que o assalta a verdade
O Órfão Guesa a vã Majestade,
E o viu São Cristóvão nos muros traçar
“Maneh Tessel Farés.” Impossível
(Murmurou) centelhita ao incrível
Incêndio, a que o mundo estremece, atear!

E ouve, ah! ah! proscrevias Ovídio
E és agora o proscrito! o subsídio
Que tu lhe negaste prudente, o hás, que não
Tenhas fome no exílio, ó Monarca,
Nem saudades, que desta bela arca
Sofreu ele. E cantas? estás doido então?

Volta à pátria! a toa c’roa, o teu cetro
Vem na praça queimar! teu espectro
Catástrofe, à Europa, ah! ah! vai fazer rir!
Não dizias-te um Republicano?
Vem! vem ser cidadão soberano
Da democracia áurea pura a surgir!

Mas, “das selvas o rei” soluçando,
Tardo e velho, na dor se apagando,
Curvado nas trevas entrou colossal.
Predissera-o o Cantor. E a conduta
Do Timbira, cruento na luta
Ora, vencedor quão piedoso e leal!

Depondo armas no mesmo áureo dia,
Dos guerreiros letal nostalgia
Na paz da Vitória ninguém chorou mais
Que dos júbilos nunca dormitem
Que altas frontes idéias imitem
Dos fortes a calma. Povo, como estais!

Joaquim de Sousândrade nasceu a 9 de julho de 1833 em São Luís, Maranhão. Formou-se em Letras pela Sorbonne, em Paris, onde fez também o curso de Engenharia de Minas. Em 1870, mudou-se para os Estados Unidos, de onde viajou por vários países até se fixar neste país no ano seguinte. O retorno ao Brasil se dá nos alvores da república. Seu primeiro livro, Harpas selvagens data 1857. A obra pela qual ficou reconhecido foi O Guesa, cuja primeira versão foi publicada em Nova York em 1876; nela, o poeta trabalhou por mais de décadas e a edição definitiva veio à luz em Londres, em 1888. Morreu a 21 de abril de 1902, na sua terra natal. A obra permanecerá esquecida até o resgate na década de 1960 pelos irmãos Campos.

* Esta é a continuação do Canto XII da edição inglesa de O Guesa.

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