segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Três poemas de Al Berto



dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


***

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia


***

A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

Al Berto nasceu a 11 de janeiro de 1948, em Coimbra. Viveu a adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, onde estudou Belas-Artes. Publicou seu primeiro livro em 1977, À procura do vento num jardim d’agosto, já em Lisboa, onde viveu o restante da breve vida. Em prosa, além deste, escreveu, entre outros, Lunário (1988), O anjo mudo (1993) e Diários (2012). Em poesia, produziu maior parte de seu trabalho; neste gênero estão títulos como Trabalhos do olhar (1982), O medo, antologia que reúne textos de entre 1974 e 1986, publicada em 1987 e reeditada com mais textos em 1991, O livro dos regressos (1989), Horto de incêndio (1998). Para o teatro compôs Apresentação da noite (1985). Morreu a 13 de junho de 1997. 

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