segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Oito poemas de Néstor Perlongher




Águas áreas

I
ACRÍLICO (ACRE LÍRICO) mais que esplendor volume furta-luz luz fria lua aquática sua raia (intersecção de élitros, choque ou ballet de vaga-lumes, niágara) de luva veste a espessura glaceando o manati de uma cutícula de nuvens, cútis nívea, glostosa de nívea, na afetação do trejeito glorioso se dispunha ao agarre da raia, quadriculado na vertigem, craquelê, sem deixar de ser ruína, melado de babas, a rebarba de nácar estirada na borda de sua bainha de valsa, ríspido roque que muda os estremecimentos em núpcias, leves, aladas, quase voiles, manatis sereias, bosques rio, pois o milagre de seu sobressalto, ao descascar, em romãs, os arozinhos de esparto, despertava nele ancas de cisne coruscante, vazio, vagabundo, sua limpidez de penas no leito imprevisto, nonada, só que se deixa levar, ser arrastado, no agito das hélices pela torrente pantanosa, escândalo de espumas a onda-urina, águas de porcelana no jorro de jóias, um portland luminoso ao envolver o polvo como luva, pérola que se revela elástica ou nasce borracha, ferida pelo acre ou o amargor, em delongas marejadas de um unguento encantado.


II
E O QUE SE REVELAVA, na vibração, mais que o cintilar do filamento em sua finura de medusa, a transparência da voz, o gargarejo mucilaginoso traçando liames de cristal entre as vestes, seu oscilar, no ar orvalhado que se dissolve numa porosidade de receptáculos: em cada oscilação o fulgurante dilaceramento da distância em glóbulos de laca, em cada glóbulo uma luz.


III
OPALESCÊNCIA E LIVIDEZ DO RAIO, fumarola de jade em seu deflúvio, arrastava nas rédeas uma coorte de erráticas divindades. Luz divina. Potlatch de luz divina na afluência das nereidas nas ondas, nas espumas das orlas. O granuloso do brocado, em cada glóbulo um soutien, laminado de astilhas, platinado, uma alma granular, fazendo coro ou eco no foro mareado das densas traiçoeiras águas. Espinhas das almas pelas águas, as borbulhas do peixe por riachos de acrílico nevado, adquire seu jade no ofego, o dobrão do ofego na dobragem, a aura amara dos sonhos. Ou no avesso da rendilha, à qual os ofegos, para amansar o estridor, dobravam-se, não morava uma enguia que, superando o fosso, se transformava em águia? Ou era o lagarto das ruínas, por monturos espelhados, deslizando seu rabo faiscante, para iscar na fricção do fole a lisura do jade.


IV
A SAUDADE DO VELUDO ou a ternura de diferir o deslizar das gemas sobre as guedelhas enfastiando-as com um laivo de naviondas chegando e partindo ao mesmo tempo, marinhas transparentes pintadas sobre uma água inquieta mas ao correr da película um ressaibo que sustenta o movimento acampanado, ou de espirais, uma flecha concêntrica, esse melaço rasga o pulmão da vítima do ar num ai ébrio, aberto como uma boca louca e em sua estendida dimensão entra a fateixa da unha na luva de veludo criando calos na frágil distância.


V
REFOLHO DE PLISSÊS de goma em ondas oleosas de incenso ar em volutas rarefeito enobrecido pela ambiência do branco derramando-se do alto de uma mesa estelar onde coruscam burilados cristais azul assume a amplitude celestial do voo do refolho na floresta etérea de lagartos enrolados em finos choupos que chorassem — se de repente são ouvidos — nênias e litanias da alma de meninas à espera de uma emenda de estilo ou movimento ao embalar a impulsão do corpo inteiro no "bailado", se faz bailar bailada a alma de menina assomada entre os rebrilhos do crucifixo de duas tábuas ou quatro braços o corisco da marisma de cristais e fulgores da fímbria e brilhos meros brilhos da luz ganso brilhante no tanque preso como suspenso no aquário aéreo mas se o agitam amplos alentos e hálitos fortes e jogos do corpo pelo vento do couro em alma viva em carne leve esfoliada possante pelos balanços rítmicos da dança, o bailado na vida, a vida no bailado e as tranças se enlaçando no repisar da vibração tremores embarcavam penteando as funduras do ser que em puro abismo o céu figuravam em planícies sinuosas que esse ritmo do bailado alisa e lhe faz frisos de divino esplendor.


VI
O CIRCUITO DE OCELOS o tanque encantado
comove lentamente com a finura de uma
enguia do ar
vermes de rosicler urdindo sob a grama
um labirinto de relâmpagos.


VII
O EMBALO DOS BOTOS nos cabelos líquidos da água, fluvial a gargantilha em suas irisações no córtex da superfície partida como um espelho pelo payé
                      que em resposta à invocação das profundezas adentra submerge de uma ponte especialmente armada para o mergulho ritual e ressurge depois de horas ou dias completamente seco, como se nunca tivesse se molhado, como se as águas mal tivessem alisado os seus cachos, cabelos que se fundem e confundem aos da mãe-d'água que derrama a azulada magnificência e magia de seus dons de aurora.


VIII
A Edward Mac Rae

MÃE DA ÁGUA vestes celestes ouro em chuvisco sobre os
olhos resplandecentes translúcidos através dos quais
a chamada pelos companheiros do fundo se embrenhava num
porto que era um ponto nas águas que davam para o bosque
a titilação incessante de seus cabelos que eram asas de
borboletas imperiais fazendo ondas aquáticas na árvore
do ar e o gorjeio dos pássaros amarelos azuis acrescentava
uma coloração fugaz intempestiva à música de
massas úmidas.


Néstor Perlongher nasceu em Avellaneda, Buenos Aires, em 1949, e morreu em São Paulo em 1992. Poeta de extensa obra, escreveu, dentre outros Austria Hungría (1980), Alambres (1987), Hule (1989) e Parque Lezama (1990).

* Traduções de Josely Vianna Baptista