Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
No amor ou na amizade preferiram.
Por igual amo, como a ave pousa
Onde pode pousar.
Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa
Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
E não onde é preciso.
Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou nenhum amo,
Nem a inocência inata de quem ama
Julgo postergada nisto.
Não no objecto, no modo está o amor,
Logo que a ame, a qualquer coisa amo.
Meu amor nela não reside, mas
Em meu amor.
Os deuses que nos deram este rumo
Do amor a que chamamos a beleza
Não na mulher só a puseram; nem
No fruto apenas.
Uns, com os olhos postos no passado
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
.
28-8-1933
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
.
28-8-1933
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
.
30-7-1914
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
.
30-7-1914
•
Fernando Pessoa estabelece duas datas distintas para o nascimento de Ricardo Reis: em Páginas Íntimas e de Auto- Interpretação (p.385)
diz este nasce no seu espírito no dia 29 de Janeiro de 1914: "O Dr. Ricardo
Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas
da noite"; depois, numa carta
a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 de janeiro de 1935, altera a data
deste nascimento afirmando que Ricardo Reis nascera no seu espírito em 1912.
Só em março de 1914 que o autor das Odes inicia a sua produção,
desde então continuada e intensa, e sempre coerente e inalterável, até 13 de
Dezembro de 1933. Médico de profissão, monárquico, fato que o levou a viver emigrado alguns anos
no Brasil, educado num colégio de jesuítas, recebeu, pois, uma formação
clássica e latinista e foi imbuído de princípios conservadores, elementos que
são transportados para a sua concepção poética.
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