dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
***
e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
***
A escrita é a minha
primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do
corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias
onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos
murmuram o último crime
escrever-te
continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue
altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos
objectos que guardaste
esta pele-memória
exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de
cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como
um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto
de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem
atravessam o silêncio
desta morada erguida na
precária saliva do crepúsculo
•
Al
Berto nasceu a 11 de janeiro de 1948, em Coimbra. Viveu a adolescência em
Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, onde estudou Belas-Artes.
Publicou seu primeiro livro em 1977, À procura do vento num jardim d’agosto,
já em Lisboa, onde viveu o restante da breve vida. Em prosa, além deste,
escreveu, entre outros, Lunário (1988), O anjo mudo (1993) e Diários
(2012). Em poesia, produziu maior parte de seu trabalho; neste gênero estão
títulos como Trabalhos do olhar (1982), O medo, antologia que reúne
textos de entre 1974 e 1986, publicada em 1987 e reeditada com mais textos em
1991, O livro dos regressos (1989), Horto de incêndio (1998).
Para o teatro compôs Apresentação da noite (1985). Morreu a 13 de
junho de 1997.
Nenhum comentário:
Postar um comentário