quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Quatro poemas de Yehuda Amichai traduzidos por Millôr Fernandes


ASSIM A GLÓRIA PASSA

Assim a glória passa,
como um comprido trem sem princípio nem fim,
sem causa ou intenção.
Eu sempre fico num lado do cruzamento
a cancela está fechada e verifico tudo:
vagões de passageiros e história,
vagões entulhados de guerra,
vagões transbordantes de seres humanos para extermínio,
janelas com caras de homens e mulheres de partida,
exaltação de viajantes, aniversários e mortes,
súplicas e piedades, e quantidades de vagões vazios chacoalhando.
Assim meus filhos passam a seu futuro,
Assim o Senhor passou sobre Moisés no Grande Deserto,
E Moisés não viu Sua Face, só gritou; “Senhor,
Ó Senhor, misericordioso e gracioso, abundante em bondade e verdade"
Assim a glória passa, assim a cancela fica fechada
até o fim de meus dias.


DEPOIS DE AUSCHWITZ

Depois de Auschwitz, nenhuma teologia. 
Das chaminés do Vaticano sobe fumaça branca,
Sinal de que os cardeais escolheram seu Papa.
Do crematório de Auschwitz sobe fumaça negra
Sinal de que o conclave dos Deuses ainda não elegeu
O Povo Eleito. Depois de Auschwitz, nenhuma teologia.
Os números nos punhos
Dos internos para exterminação
São os números dos telefones de Deus
números que não respondem e agora são desligados,
um a um.
Depois de Auschwitz, uma nova teologia;
Os judeus que morreram no Shoah
Agora ficaram semelhantes a seu Deus
Que não tem semelhança com um corpo e não tem corpo
Eles não têm semelhança com um corpo e não tem corpo.


O QUE EU APRENDI NAS GUERRAS

O que eu aprendi nas guerras
A marchar no ritmo de braços e pernas
Como bombas bombeando um poço vazio.

A marchar numa fila e sozinho no meio,
A enterrar em travesseiros,
Colchões de penas,
O corpo de uma mulher amada.
E a gritar “mamãe”
Quando ela não pode ouvir,
E a gritar por deus
Quando eu não creio nele,
E mesmo que acreditasse nele
Eu não lhe falaria sobre a guerra
Como a uma criança não se fala
Dos horrores adultos.

Que mais eu aprendi.
Aprendi
A reservar um caminho para a retirada.
Em terras estrangeiras
Alugar um quarto em hotel
Perto do aeroporto ou da estação de trem.
E mesmo em cerimônias nupciais
Ficar sempre de olho na pequena porta
Com o sinal “exit” em letras vermelhas.

Uma batalha começa
Com tambores rítmicos para dança e termina
Com uma “retirada ao amanhecer”.
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim.

Mas acima de tudo
Aprendi a sabedoria da camuflagem,
Não ficar visível, não ser reconhecido,
Não me distinguir daquilo que me cerca,
Nem mesmo de quem amo.
Que pensem que sou uma moita ou um carneiro,
Uma árvore, a sombra de uma árvore,
Uma cerca viva, uma pedra morta,
Uma casa, o canto de uma casa.

Se eu fosse um profeta
Teria diminuído o brilho da visão
Escurecido minha fé com papel negro.

E quando chegar meu tempo,
Endossarei a camuflagem de gala do meu fim:
Com branco de nuvens, bastante azul de céu,
E estrelas infinitas.


AMANTES DEIXAM IMPRESSÕES DIGITAIS UM NO OUTRO

Amantes deixam impressões digitais um no outro,
cheias de evidências físicas, palavras sem fim, testemunhos,
um par de calças vincadas, um jornal com a data exata,
e dois relógios, o dele e o dela.
Toda manhã eles traçam o contorno um do outro
como a polícia marca com giz a posição do corpo na estrada.
Amantes rendem um o outro,
amantes reservam o direito de manter silêncio.
Se e quando se separam,
compõem um esboço policial de suas caras
e um contorno pra que possam dizer:
E esse! E essa!

Yehuda Amichai nasceu no dia 3 de maio de 1924, em Würzburg, Alemanha. Com a ascensão nazista, a família, judia ortodoxa, emigra para a Palestina; Amichai tinha, então, 12 anos; em 1936 mudam-se para Jerusalém. Foi à Segunda Guerra onde lutou ao lado dos ingleses na Brigada Judia do Exército Britânico. No retorno do front passa a lutar contra os britânicos na Guerra de Independência de 1948. Após os conflitos conclui seus estudos em Literatura Hebraica na Universidade de Jerusalém e passa a lecionar mais tarde em Haifa. Publicou mais de 15 livros. Morreu em 2000.



2 comentários: