No relicário que te acolhe
é-me angustioso supor
o labor das areias
na madeira.
E meu pesadelo dos pesadelos
a iconoclasta muchém
no afã da sua lavra
orgiando-se voraz.
Blasfémia suprema
o festim.
O coval
Excêntrica
é a minha indignada
mesquinha forma de sofrer.
Lúcido
eu a desencher o mundo
tapando-me no mesmo coval.
Monograma
A sotavento da face
colar aquoso
se desfia
E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.
Colar
que se desfia
no próprio lapso.
Gumes de névoa
Lágrimas?
Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?
O sacrário
A ausência do corpo.
Amor absoluto.
Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.
Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.
Silepses
Ajustadas ao comprido as ripas
esfarelando-se devagarinho
por entre minuciosos
dedilhos de terra.
E
em melancólicas silepses
conspícuas gralhas versejam
extemporâneas férias
da Maria.
•
José
Craveirinha nasceu a 28 de maio de 1922 em Maputo, Moçambique. Sua atividade
como escritor começou nos jornais e foi colaborador de vários deles em seu
país. Vivo ativista pelos movimentos de libertação do regime colonial imposto
por Portugal, foi preso entre 1965 e 1969 pela polícia política do regime
militar português. Autor de vasta obra, com a qual foi fartamente premiado, sendo
o primeiro escritor africano de língua portuguesa a receber o Prêmio Camões, em
1991, dos seus livros destacam-se: Xibugo (1964), Karingana ua
karingana (1974), Cela 1 (1980), Maria (1988), Poemas da prisão
(2004), este último publicado postumamente. Craveirinha morreu no dia 6 de
fevereiro de 2003, em Joanesburgo, África do Sul.
* Os poemas aqui apresentados form publicados inicialmente na revista Colóquio/Letras, n. 110-111, jul-out. de 1989.
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