OS PAIS
Foi do nosso tempo
Para nós tornou-se um provérbio
Partirá
E, no entanto,
Na mutação rápida dos tempos
O rasto há-de apagar-se
Como se fosse um ano
Formando um zero entre o nove e o cinco
Não foi vivido
Não resta dele qualquer vestígio.
A noite está ainda sob as armas
E a aurora não pegou na espingarda;
Contudo,
Olhemos sem descanso:
Já é cada vez mais claro
As trevas, no fundo das armas,
Estão mergulhadas
Numa semi-sonolência,
Pelos areais...
Esta noite:
É a nossa infância:
E a juventude dos nossos mestres de escola.
Antes dela, a tarde
Dos naufrágios
Dos círculos e dos heróis
Dos dinamitadores
Dos daguerreótipos
Do fogo da alma
As troicas deslizando pelas grandes estradas
Mas construindo fábricas ao longo dos caminhos
Os Savva erguem-se
E os Vikoula amadurecem nos recantos ignorados.
O rufar do tambor
É coberto pelo apito dos comboios
Estrépito dos infames télegues
Estrondo das primeiras plataformas
A Rússia dos servos,
Saindo da severidade familiar,
Engolfa-se num terreno confuso
E passa a chamar-se
A Rússia depois das reformas.
São os militantes da "Naródnaia Vólia",
A Perovskaia,
O Primeiro de Março,
Os niilistas vestidos de poddiovka
As câmaras de tortura,
Os estudantes de lunetas,
A história dos nossos pais,
Exatamente como a história
Do século dos Stuart.
Mais adiante que Pushkin,
Tudo aparece
Através de um sonho.
Não se poderia envolvê-la mais de perto:
Vinte e cinco anos de clandestinidade
O tesouro está debaixo da terra
Sobre a terra -
Um caleidoscópio sem alma
Para desenterrar o tesouro:
Os nossos olhos sondam
Até à dor,
Fascinados pelo chamamento.
Nós mesmos descemos à mina.
Aqui estava Dostoiévski.
Quanto a estas mulheres votadas à reclusão,
Não esperando
Que, para elas,
Cada investigação
Fosse uma transferência de relíquias para o museu
Iam para a fogueira
Preparadas
Para que o clandestino Nechaiev
Enterrasse a sua beleza na terra,
Ocultando-a
Quer aos amigos, quer aos inimigos.
Foi ontem
E se tivéssemos nascido trinta anos antes
A saída do tribunal especial
Da auréola dos candeeiros de petróleo
Havia de apodrecer-nos, no cintilar dos globos,
Que estas obreiras
Eram as nossas mães
Ou
As amigas de nossas mães.
Chuvisca.
No palácio o surro abrandou
Os lampiões apagam-se
Doçura no ar.
A cidade está deserta e como que surda
A noite respira
Folhas caídas
E os cardos do cemitério
Nem uma alma.
A praça pública está mergulhada em sonolência -
Um dormir inquieto.
Todavia, num estilo enfático tradicional,
Eram redigidos os relatórios.
E ignorando desgraças,
Do lado de lá da Néva,
O ruído dum caleche.
E a noite de Setembro
Sufoca
Sob o mistério do tesouro.
E Stepan Khalturin
Não dorme
Por causa da dinamite.
Esta noite ficará imóvel,
Na modorra,
Até aos tempos do Porto Artur.
Os postos telegráficos
Estarão às ordens da forca.
O murmúrio das vítimas e dos despachos,
Acelerando-se,
Adormecerá o serviço de informações.
É então que virá
Esse inverno
Em que tudo ganhará ânimo.
Nós viremos ao mundo
Bem ou mal.
O sol crepuscular
Atrair-nos-á à janela
E, ao acaso, inspiraremos
O poente inédito.
E diante do espetáculo das chaminés
Ficaremos perturbados
Como ficaria
Aquele que pudesse
Regressar um século atrás.
Tal como Laocoonte
A fumarada
Sobre a geada de rachar pedras,
Desnudando-se
Como um atleta,
Abraçará e derrubará as nuvens.
O dia, em fuga,
Deslizará
Sobre os patins de ferro
Das redes telegráficas
Que se escapam da mansarda.
E pouco mais tarde,
Como a conduzir um filho pródigo
Para que este dia
Não se esmague na calçada,
Os lampiões dos edifícios
Saem com as luzes na noite.
E do alto do céu,
Através do nevoeiro,
Empurram-no suavemente,
Guiando-o
Sulco após sulco.
Foi do nosso tempo
Para nós tornou-se um provérbio
Partirá
E, no entanto,
Na mutação rápida dos tempos
O rasto há-de apagar-se
Como se fosse um ano
Formando um zero entre o nove e o cinco
Não foi vivido
Não resta dele qualquer vestígio.
A noite está ainda sob as armas
E a aurora não pegou na espingarda;
Contudo,
Olhemos sem descanso:
Já é cada vez mais claro
As trevas, no fundo das armas,
Estão mergulhadas
Numa semi-sonolência,
Pelos areais...
Esta noite:
É a nossa infância:
E a juventude dos nossos mestres de escola.
Antes dela, a tarde
Dos naufrágios
Dos círculos e dos heróis
Dos dinamitadores
Dos daguerreótipos
Do fogo da alma
As troicas deslizando pelas grandes estradas
Mas construindo fábricas ao longo dos caminhos
Os Savva erguem-se
E os Vikoula amadurecem nos recantos ignorados.
O rufar do tambor
É coberto pelo apito dos comboios
Estrépito dos infames télegues
Estrondo das primeiras plataformas
A Rússia dos servos,
Saindo da severidade familiar,
Engolfa-se num terreno confuso
E passa a chamar-se
A Rússia depois das reformas.
São os militantes da "Naródnaia Vólia",
A Perovskaia,
O Primeiro de Março,
Os niilistas vestidos de poddiovka
As câmaras de tortura,
Os estudantes de lunetas,
A história dos nossos pais,
Exatamente como a história
Do século dos Stuart.
Mais adiante que Pushkin,
Tudo aparece
Através de um sonho.
Não se poderia envolvê-la mais de perto:
Vinte e cinco anos de clandestinidade
O tesouro está debaixo da terra
Sobre a terra -
Um caleidoscópio sem alma
Para desenterrar o tesouro:
Os nossos olhos sondam
Até à dor,
Fascinados pelo chamamento.
Nós mesmos descemos à mina.
Aqui estava Dostoiévski.
Quanto a estas mulheres votadas à reclusão,
Não esperando
Que, para elas,
Cada investigação
Fosse uma transferência de relíquias para o museu
Iam para a fogueira
Preparadas
Para que o clandestino Nechaiev
Enterrasse a sua beleza na terra,
Ocultando-a
Quer aos amigos, quer aos inimigos.
Foi ontem
E se tivéssemos nascido trinta anos antes
A saída do tribunal especial
Da auréola dos candeeiros de petróleo
Havia de apodrecer-nos, no cintilar dos globos,
Que estas obreiras
Eram as nossas mães
Ou
As amigas de nossas mães.
Chuvisca.
No palácio o surro abrandou
Os lampiões apagam-se
Doçura no ar.
A cidade está deserta e como que surda
A noite respira
Folhas caídas
E os cardos do cemitério
Nem uma alma.
A praça pública está mergulhada em sonolência -
Um dormir inquieto.
Todavia, num estilo enfático tradicional,
Eram redigidos os relatórios.
E ignorando desgraças,
Do lado de lá da Néva,
O ruído dum caleche.
E a noite de Setembro
Sufoca
Sob o mistério do tesouro.
E Stepan Khalturin
Não dorme
Por causa da dinamite.
Esta noite ficará imóvel,
Na modorra,
Até aos tempos do Porto Artur.
Os postos telegráficos
Estarão às ordens da forca.
O murmúrio das vítimas e dos despachos,
Acelerando-se,
Adormecerá o serviço de informações.
É então que virá
Esse inverno
Em que tudo ganhará ânimo.
Nós viremos ao mundo
Bem ou mal.
O sol crepuscular
Atrair-nos-á à janela
E, ao acaso, inspiraremos
O poente inédito.
E diante do espetáculo das chaminés
Ficaremos perturbados
Como ficaria
Aquele que pudesse
Regressar um século atrás.
Tal como Laocoonte
A fumarada
Sobre a geada de rachar pedras,
Desnudando-se
Como um atleta,
Abraçará e derrubará as nuvens.
O dia, em fuga,
Deslizará
Sobre os patins de ferro
Das redes telegráficas
Que se escapam da mansarda.
E pouco mais tarde,
Como a conduzir um filho pródigo
Para que este dia
Não se esmague na calçada,
Os lampiões dos edifícios
Saem com as luzes na noite.
E do alto do céu,
Através do nevoeiro,
Empurram-no suavemente,
Guiando-o
Sulco após sulco.
•
Boris
Pasternak nasceu no dia 10 de fevereiro de 1890, em Moscou. Estudou filosofia
na Alemanha e no retorno à cidade natal publicou seu primeiro livro, uma
coletânea de poemas intitulada Gêmeo nas nuvens; a este gênero dedicaria
sua vida e no qual situou grande parte de sua obra. Na prosa, ficou conhecido como
o autor de Douto Jivago, romance publicado um ano antes do Prêmio Nobel
de Literatura, recebido em 1958. Morreu a 30 de maio de 1960 em Peredelkino.
* Tradução de João Apolinário.
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