domingo, 22 de dezembro de 2013

Um inédito de Almada Negreiros mais manuscrito

2013 foi o ano de Almada Negreiros. 120 anos de seu nascimento. Entre os materiais das celebrações, a Biblioteca Nacional de Portugal editou um catálogo no qual apresenta "Aconteceu-me" como um poema inédito, achado recentemente numa revisitação ao catatau de papéis deixados pelo multiartista. A reprodução é feita desse material.



Aconteceu-me

Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado.
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz torna-me quasi real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe no dia 7 de abril de 1893. Escritor e artista plástico, ajudou a fundar a revista Orpheu, veículo de introdução do modernismo em Portugal. Como escritor é autor de vasta obra inovadora que inclui prosa, poesia e teatro. Morreu em 15 de julho de 1970 em Lisboa.

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