Frutos
A bondade da mangueira
não é o fruto.
não é o fruto.
É a sombra.
A térrea,
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.
Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.
Ninguém celebra a estação das sombras.
Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.
um, fruto; outro, sombra.
A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.
O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore
A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.
Para o homem
vale a polpa.
vale a polpa.
Para a terra
só a semente conta.
só a semente conta.
Números
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro
Luas.
Para a tua boca, todas as
vidas.
Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.
é obra para infinitos deuses.
Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.
um só amor cumpre o milagre.
Tristeza
A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.
não é a do lavrador sem terra.
A minha tristeza
é a do astrónomo cego.
é a do astrónomo cego.
O bairro da minha infância
Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço da água.
é o impossível abraço da água.
•
Mia Couto
nasceu em Moçambique em 1955. Formado em Biologia, exerceu várias profissões,
além da sua área de formação, como a de jornalista e a de professor. É autor de
vasta obra que transita entre a prosa e a poesia e com a qual já recebeu alguns
importantes prêmios como o Camões (2013). Em poesia publicou Raiz de orvalho, Tradutor
de chuvas, Idades, cidades,
divindades e Vagas e lumes.
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