segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Quatro poemas de "Tradutor de chuvas", de Mia Couto



Frutos

A bondade da mangueira
não é o fruto.

É a sombra.

A térrea,
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.

Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.

Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.
A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.

O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore

A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.

Para o homem
vale a polpa.
Para a terra
só a semente conta.


Números

Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.

Para um só Sol, quatro Luas.

Para a tua boca, todas as vidas.

Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.

Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.


Tristeza

A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza
é a do astrónomo cego.


O bairro da minha infância

Não são as criaturas que morrem.

É o inverso:
só morrem as coisas.

As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.

E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.

A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.

Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.

Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.

Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.

A morte
é o impossível abraço da água.

Mia Couto nasceu em Moçambique em 1955. Formado em Biologia, exerceu várias profissões, além da sua área de formação, como a de jornalista e a de professor. É autor de vasta obra que transita entre a prosa e a poesia e com a qual já recebeu alguns importantes prêmios como o Camões (2013). Em poesia publicou Raiz de orvalho,  Tradutor de chuvas, Idades, cidades, divindades e Vagas e lumes.

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