UMA EDUCAÇÃO SENTIMENTAL
Não é Amor.
Mas em que medida é minha
a culpa se
não converto em Amor
os meus afetos?
Muita culpa, de acordo,
se pudesse
viver dia após dia
de uma louca
pureza, de uma piedade cega.
Escandalizar
com a minha mansidão.
Mas a
violência em que me atordoo,
dos
sentidos, do intelecto, era desde há anos
o único
caminho. À minha volta,
nas origens,
só havia a Língua das fraudes
instituídas,
das ilusões devidas,
que as
primeiras angústias
de um
menino, as paixões pré-humanas,
já impuras,
não exprimia. E quando,
adolescente,
conheci neste país
algo que não
era a alegria
de uma vida
de criança — num país
provinciano,
mas para mim absoluto, heroico —
foi a
anarquia. Na nova e já mesquinha
burguesia de
uma província sem pureza,
a primeira
aparição da Europa
foi para mim
aprendizagem do uso mais
puro da
expressão, que a escassez
da fé de uma
classe moribunda
iria
ressarcir com a loucura e os tópoi
da
elegância: que seria a indecente clareza
de uma
língua que revela
a vontade
inconsciente de não ser,
e a
consciente vontade de subsistir
no
privilégio e na liberdade
que por
Graça são pertença do estilo.
AS BELAS BANDEIRAS
Os sonhos da
manhã: quando
o sol já
reina
com uma
plenitude
que ninguém
sente melhor que o vendedor ambulante
que há
muitas horas anda pelas ruas
com barba de
doente
sobre as
rugas da pobre juventude:
quando o sol
reina
em reinos de
frutos e legumes já quentes, sobre cortinas
puídas,
multidões
com roupas a
cheirar obscuramente a miséria
— e já
centenas de eléctricos foram e voltaram
pelos carris
das avenidas que rodeiam a cidade,
com o seu
perfume inexprimível,
os sonhos
das dez da manhã,
para quem
dormita, sozinho,
como um
peregrino no seu catre,
um cadáver
sem nome,
— surgem em
luminosas letras gregas,
e, na
sacralidade simples de duas ou três sílabas,
cheias,
justamente, da brancura triunfante do sol —
são
presságio de uma realidade
profundamente
amadurecida e agora já madura, como o sol,
para ser
saboreada, ou meter medo.
O que me diz
o sonho da manhã?
“o mar, com
ondas lentas, grandiosas, de grãos azuis,
assanha-se,
agitando-se com fúria uterina,
irredutível
e como que
feliz — porque também é felicidade
confirmar o
mais atroz ato do destino —
rói a tua
ilha, agora reduzida
a poucos
metros de terra. ..”
Socorro, a
solidão aproxima-se!
Não importa
saber que a desejei, como um rei.
No sono, em
mim, um menino mudo assusta-se,
pede
piedade, apressa-se a correr para os abrigos,
com uma
agitação
que “a
virtude faz esquecer”, pobre criatura.
Aterra-o a
ideia
de estar só
como um
cadáver nas profundezas da terra.
Adeus,
dignidade, no sonho, embora matutino!
Quem tem de
chorar chora,
quem tem de
se agarrar às abas da casaca de alguém,
agarra-se, e
vai puxando, puxando,
para que os
rostos cor de lama se voltem,
e o olhem
nos olhos assustados
e fiquem a
par da sua tragédia,
e vejam bem
o que há de medonho no seu estado!
Sobre tudo
isso, a brancura do sol,
como um
fantasma que a história
faz pesar
nas pálpebras
com o peso
dos mármores barrocos ou românicos...
Fui eu que
quis a minha solidão.
Por um
processo monstruoso
que talvez
só um sonho sonhado no seio
de outro
sonho poderia revelar...
Entretanto,
estou só.
Perdido no
passado.
(Porque o
homem tem na vida uma só época.)
De repente,
os meus amigos poetas,
que
partilham comigo a feia brancura
destes Anos
Sessenta,
homens e
mulheres, pouco mais velhos
ou mais
jovens — estão ali, ao sol.
Não soube
ter a graça necessária
para os
manter por perto — à sombra de uma vida
cujo curso
se mantém por demais ligado
à inércia
radical da minha a1ma.
Depois, a
velhice fez
da minha mãe
e de mim
duas
máscaras
que, porém,
nada perderam
da ternura
matinal
— e a antiga
cerimónia
repete-se
com uma
autenticidade
que só um
sonho sonhado no seio de outro sonho
me permitirá
talvez chamar pelo seu nome.
O mundo
inteiro é o meu corpo insepulto.
Atol que se
esboroa
sob as
pancadas repetidas dos grãos azuis do mar.
Que hei—de
fazer senão voltar a ser digno, ao acordar?
Talvez tenha
chegado
a hora do
exílio: a hora em que um antigo daria realidade
à realidade,
e a solidão
amadurecida à sua volta
teria a
forma da solidão.
Mas eu —
como no meu sonho —
continuo a
embalar-me em ilusões, dolorosas,
de verme
paralisado por forças que não entende:
“não! não! é
só um sonho!
a realidade
está lá
fora, ao sol triunfante,
nas avenidas
e nos cafés vazios,
na afonia
suprema das dez horas da manhã,
nu m dia como
os outros, com a sua cruz!”
O meu amigo
com queixo de papa, o meu
amigo de
olhos de avelã. ..
os meus
queridos amigos do Norte
escolhidos
por afinidades electivas doces como a vida ,
─ estão ali,
ao sol.
A Elsa, com
a sua loura dor,
— corcel
ferido, caído,
sangrando —
também lá está.
E a minha
mãe está junto de mim...
mas para
além de qualquer limite temporal:
somos dois
sobreviventes num só.
Os seus
suspiros, aqui, na cozinha,
o seu
desassossego a cada sombra de notícia degradante,
cada
suspeita de reinvestida
do ódio
dessa horda de goliardos que riem
por baixo
deste quarto onde agonizo
— são apenas
o que na minha solidão é natural.
Como uma
rainha atirada para a fogueira com o seu rei,
ou sepultada
com ele
um túmulo
que se vai como um batel
rumo aos
milénios — a fé dos Anos Cinquenta
está aqui,
comigo, já levemente para lá dos limites do tempo,
deixar-se
também esboroar
pela
paciência raivosa dos grãos azuis do mar.
E...
os meus
amores de sensualidade pura,
repetidos
nos vales sagrados da luxúria,
sádica,
masoquista, as calças
com o
inchaço morno
que marca o
destino de um homem
─ são
atos que cumpro a sós
no meio de
um mar incrivelmente revolto.
Lentamente,
os milhares de gestos sagrados,
a mão sobre
o inchaço morno,
os beijos,
sempre em bocas diferentes,
cada vez
mais virgens,
cada vez
mais próximas do encanto da espécie,
da norma que
faz dos filhos ternos pais,
lentamente
foram-se
transformando em monumentos de pedra
que aos
milhares povoam a minha solidão.
Esperam
que uma nova
vaga de racionalidade,
ou um sonho
sonhado no fundo de outro sonho, fale deles.
Assim
acordo,
mais uma
vez:
e visto-me,
sento-me à mesa de trabalho.
A luz do sol
é já mais madura,
os
vendedores ambulantes estão mais longe,
é mais acre,
nos mercados do mundo, a tepidez das verduras,
ao longo das
avenidas de inexprimível perfume,
na orla dos
mares, nos sopés dos vulcões.
O mundo todo
trabalha, na sua época futura.
Ah, belas
bandeiras dos Anos Quarenta!
Pretexto
para o bobo chorar.
•
Pier Paolo Pasolini nasceu a 5 de
março de 1922 em Bolonha. Sua estreia na literatura acontece com a poesia, gênero que cultivará ao longo de sua carreira, marcada ainda pelo trabalho na prosa (ensaio, novela, romance), no teatro e nas artes plásticas, sobretudo no cinema. Foi brutalmente assassinado
na madrugada do dia 1º para 2 de novembro em 1975, em Roma.
* A partir
da tradução portuguesa de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.
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