terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Cinco poemas de Leonardo Fróes

 


A LAGOA DOS OLHARES
 
No fundo, ninguém conhece
ninguém. A não ser por alto.
Mas na hora dos encontros,
quando os litígios se afogam
na lagoa dos olhares,
quando entre dois surge a igualdade
de um ponto de vista ao ponto
sem ônus de animosidade,
 
nos momentos assim, que até nos ônibus
lotados podem acontecer de repente,
se aos solavancos ali olhos se cruzam
no mais perfeito entendimento possível,
 
nos momentos amenos em que as pessoas
(uma no mar da outra mergulhadas
por atração ou forte simpatia)
deixam de perceber que se ignoram,
isso é tudo o que podem no tocante
ao que existe para conhecer do outro lado.
 
Quando nos vemos, de nós embevecidos
na serena permuta de um instante
em que a emoção de viver nos aglutina,
a presença da espécie rarefaz-se, nosso amor pacifica
 qualquer onda de susto ou qualquer guerra.
 
Depois, contudo, cada qual volta ao seu casulo,
solucionando-se, ou não, na solidão.
É bom se ver, distrai se entreolhar
e é ótimo se conhecer, assim por alto.
Ninguém porém entrega a senha do mistério
que é humano ser um só na multidão.
 
 
MODALIDADE CLÁSSICA DE PULO NO ABISMO
 
O conhecido, que permaneceu carregado
de dúvidas, tirou um mapa da carteira e mostrou.
Cortando a estrada principal, onde o mapa
fora dobrado tantas vezes,
havia agora um rasgo no papel que era
um abismo largo para o forasteiro pular.
“Quero ver”, pensou o inimigo embutido
na timidez. O conhecido perguntou outras vezes,
outros responderam que não, e alguns teimaram.
O forasteiro, sem sair do lugar, mas com atenção
e permanecendo de fora, deu um passo,
achou a solução para transpor o buraco: foi voando,
é claro, enquanto a discussão prosseguia,
e viu o tungstênio queimando. Ao queimar
no relento do prolongamento da estrada, a outra ponta
além do rasgo, ao dormir tão longe, ele imaginava
o conhecido ali naquela sala apertando
mãos, ouvindo nãos, mostrando o mapa, conhecendo pessoas
e opiniões. Considerando que seria ousadia,
pretensão ou ultraje, voar, como ele fez, para a fonte
sem mover os olhos, sem medir a distância,
sem acreditar.
 
 
O CARANGUEJO COME A PRÓPRIA PERNA
 
Sempre se engraçando com a vida, sempre
com sua capa vermelha
gozando
o touro que o não ataca, antes o lambe
sem maiores problemas, se tornando
sempre
um vigilante sorridente
de seu próprio fracasso, sempre um autopalhaço
que com nenhuma graça se contenta
e, nos espelhos velhos do seu camarim abafado,
se desabafa, sempre lendo
as bulas pelo avesso, os jornais ao contrário,
a história a seu gosto,
botando sempre algo de seu nas coisas
que se encarregam, vistas,
de o fabricar e consumir, sempre o seguinte, o ghost-writer,
sempre o seguidor da banda, o espião solitário
que investiga as chances de uma praça
onde só há memória e destroços,
memória e liberdade
e uma coisa branda que eu não o nome.
 
 
SE ME QUISER COMO EU SOU,
ESTOU ÀS ORDENS        
 
Artesão do possível obreiro
numa colmeia de apressados
fazedores lento ledor de enigmas
e iridescências móveis
que atravessam o céu paciente
consumidor de anúncios boletins mensagens
indecifráveis do longa vítima
de mutações sentimentais
que desarrumam o mundo
e o recriam sócio de empreitadas
frustradas porém sentidas
como o transcurso da tarde
que se enrodilha em nuvens e langor doutor
em absurdas ciências
que, ao nada explicar, conduzem
à alegria do escuro ao urro
da aceitação animal.
 
 
JUSTIFICAÇÃO DE DEUS
 
o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam para construir contra a água.
Também chamei de deus a uma porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
e é talvez a calma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.
 
 
Leonardo Fróes nasceu a 17 de fevereiro de 1941 em Itaperuna. Sua obra poética começou a ser publicada em 1968 com o livro Língua franca. Depois, vieram, entre outros A vida em comum (1969), Esqueci de avisar que estou vivo (1973), Anjo tigrado (1975), Sibilitz (1981), Assim (1986), Argumentos invisíveis (1995), Um mosaico chamado paz do fogo (1997) e Chinês com sono seguido de clones do inglês (2005). Em 1996, recebeu o Prêmio Jabuti.

Nenhum comentário:

Postar um comentário