segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cinco poemas de Fernando Paixão



CATECISMO
Água benta para os olhos
ícone de circuitos e tentáculos
vaivém de saberes e cascalhos
sagrados venais profanos

agora somos cibernéticos
nem gregos nem moicanos
todos os dias oramos
Ave Maria à internet.


GUERRA
Trovão
das mortes

clareia
o carvão.


CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS
A noite permanece triste
no subúrbio.
Os animais humanizam os cartazes
de propaganda.
É de metal a passagem dos meses.

Pouco sabemos
do tempo vindouro.
As névoas
movimentam-se entre guindastes.

Tão indelicada
a chuva
fora de hora...


FENDA
Já não repito
os mesmos
nítidos
idos gestos

entre lábios
cresce
orvalho
o novo travo.

Não sai o som
da voz
na manhã seguinte
com igual exatidão:

mudei
de mim?

Entre ontem
e amanhã
minha face
tem o rosto
- de quem?


POÉTICA
Sem autoria e sem versos a poesia será encontrada
na pedra
no rosto e na copa das árvores ensimesmada

sinal
da sina
cor nos azulejos

o abraço das palavras
renova a presença das portas
e janelas de uma casa.

A poesia sim
se presta à prosa
da vida

invisível porcelana.

Fernando Paixão nasceu em 1955 na aldeia portuguesa de Beselga. Mudou-se para o Brasil em 1961, onde formou-se em jornalismo pela Universidade de São Paulo; na mesma instituição concluiu mestrado sobre a poesia de Mário de Sá-Carneiro. Dentre os livros que publicou destacam-se, em poesia, Rosa dos tempos (1980), livro que seria mais tarde recusado. Considera que sua obra principia com Fogo dos rios e 25 azulejos, de 1994.

* Estes poemas aqui apresentados apareceram primeiramente no caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo de 5 de dezembro 2010.

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