quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Cinco poemas de Gastão Cruz




LINHA

É menos o que lembro que
o que esqueço Sobre
a linha febril onde o presente
desaparece imerso na luz frágil do sono

(de tanto interrogar esta hora que esgota
a ilusão da noite
movo os olhos abertos entre as
formas procurando a mudança)

confundo com a sombra, em que apareço
por momentos real,
o meu corpo Pareço-me

comigo noutro quarto A realidade
invade o céu A luz
desmoronou o cérebro, castelo

* De revista A Phala, edição n. 14, abril-junho de 1989.


SOM DA LINGUAGEM

Por vezes reaprendo
o som inesquecível da linguagem
Há muito desligadas
formam frases instáveis as

palavras
Aos excessos do céu cede o silêncio
as constelações caem vitimadas
pelo eco da fala

* De Câmpanula


RELATÓRIO EM FORMA FECHADA

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam

* De A moeda do tempo


5

Tornara-se perfeita a coincidência:
sobre a mesa puseras os braços e subia
o teu olhar; ameaçavas mas eras
o ser ameaçado, por um tiro talvez;
nesse momento não podias
nem mesmo suspeitar de como era tão breve
a personagem
de que não te separaras

* De Fogo 


Autor de uma obra que aparece ligada ao coletivo Poesia 61 e destacado entre os principais nomes da poesia de língua portuguesa, Gastão Cruz também exerceu sua atividade literária na prosa e no teatro, além de escrever crítica e se dedicar ao trabalho da tradução. Na poesia, é o autor de mais de duas dezenas de títulos; Campânula, Órgão de luzes, As pedras negras, A moeda do tempo, Observação do verão, Fogo, Óxido e Existência são alguns desses livros. No teatro, foi um dos fundadores do Grupo de Teatro Hoje, para o qual encenou obras de Camus, Tchekhov e Carlos de Oliveira. E, como tradutor, trouxe ao português obras de autores como William Blake, Jean Cocteau e Shakespeare. Sua longa trajetória dedicada às letras obteve alguns importantes reconhecimentos em seu país, como o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, o Prêmio D. Dinis e Prêmio Correntes d’Escrita. Formado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Gastão Cruz nasceu em Faro a 20 de julho de 1941 e morreu em Lisboa no dia 20 de março de 2022.

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