segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Dois poemas de Luís Carlos Patraquim




AL-GHARB

Pelo lagar da noite
Estremecem as amendoeiras

Corre no ar um tropel furtivo
Seus panos de azeite
E madeixas de sangue na corola
Das mulheres

Ela só lívida de azul e oiro
Ave do mundo

E a mãe diurna
Boca a boca multiplicada.


LENDO JORGE DE SENA

"Que tudo seja como outrora eu vi:
Uma figura ao longe recortada."

Jorge de Sena, "Sete sonetos da visão perpétua"

porque soberano Amor me ronda
e nos rios o ossário dos meses
em gestação é que vagueio
na ancorada nau das canções de Babel e Sião
hipótese da pedra com sílabas de colmo
e o vento por irmão

este é o campo das regadas areias
onde Heitor apodreceu
que uma sepultura em Creta acolherá
dos deuses o corpo que lhe morreu

não eu hausto na ilha errante
da entumecida voz à míngua
dos seminais lugares da esperança
e porque senão de angústia nos armamos
da exposta lança que é a língua
como se casa houvera desnudamos
extreme peregrinação nenhuma
de visão mais torturada
"uma figura ao longe recortada".

Luís Carlos Patraquim nasceu em Maputo em 1953. É considerado por críticos e especialistas como um dos maiores poetas moçambicanos vivos. Teve papel importante e inovador na literatura, cinema e jornalismo de Moçambique. Sua primeira obra, Monção (1980), demarcou o início de uma outra estação literária em Moçambique, até então marcada pela poesia panfletária. A nova vertente passou a aliar a reflexão aos sentidos, construindo poemas dotados da capacidade de enaltecer a vida, acreditar no amor, despertar os desejos, desbravar o espaço onírico, repensar a própria poesia. A vasta obra poética é dividida com os trabalhos de roteirista, e jornalista. Além da obra de 1980, é autor de títulos como A inadiável Viagem (1985), Lidemburgo Blues (1997) e Pneuma (2008). Foi galardoado com o Prêmio Nacional de Poesia de Moçambique, em 1995, quando já vivia em Portugal, para onde se mudou em 1986.


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Três poemas de Sebastião da Gama



PEQUENO POEMA

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe... 


MEU PAÍS DESGRAÇADO

Meu país desgraçado!
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…
Meu país desgraçado!
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam! 


PUREZA

Vem toda nua 
ou, se o não consentir o teu pudor,
vestida de vermelho.

Teus tules brancos,
o azul, que desmaia,
de tuas sedas finas,
guarda-os p’ra outros dias.

Pra quando, Amor!, teu ventre, já redondo,
merecer a pureza do azul...

Sebastião da Gama nasceu em Vila Nogueira de Azeitão no dia 10 de abril de 1924. Os problemas de saúde que, por indicação médica, o levam ao ar puro da serra da Arrábida, em Setúbal. Rodeado por todas as tonalidades de verde, com o mar ao fundo, escreve verdadeiros hinos à natureza e desenvolve uma consciência ambiental. Em defesa do seu "paraíso" que começava a ser destruído pelo asfalto das estradas, funda em 1948 a Liga para a Proteção da Natureza, a primeira associação ambientalista portuguesa. Foi poeta e professor. Publicou, dentre outros, em poesia Serra-mãe, livro de estreia, em 1945, e Campo aberto (1951); grande parte de sua obra foi editada postumamente e destes destaca-se O segredo é amar. Morreu aos 28 anos, vítima de tuberculose.