segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Dois poemas de Peter Handke




ÉSQUILO, ESSE OUTRO FILHO DO HOMEM

Queria lançar-me de cabeça contra uma hélice de navio,
tal como quisera uma vez lançar-me de cabeça
contra a janela de vidro da torre de um miradouro,
separar-me desse modo da beleza,
da terra, do paraíso,
da cidade santa de Sion, do enganoso amor.
E esse estado não passava.
Durante o resto da viagem permaneci ausente,
olhos arregalados de melancolia,
o coração como um tique-taque um pouco maligno,
apenas um espírito vital como tantas vezes, durante o trabalho,
no recanto diário,
curvado sobre as palavras,
as designações originais,
as palavras primitivas de Ésquilo, esse outro Filho do Homem:
«A Terra-Mãe», «as risadas, incontáveis, das ondas do mar»,
no brilho sempre renovado
do nosso «relampejar» através do seu antigo «olho astral» grego.
Não, logo no dia em que o vivi tive a consciência
de que a esse prodígio faltava a duração.
É certo que consegui reter o momento,
mas, mesmo assim,
não tinha direito a ele.
Voltar p'ra casa, única e simplesmente voltar p'ra casa, pensava eu,
regressar ao pobre jardim
que abandonara, com as panículas cinzentas das gramíneas
que por toda a parte iam desabrochando,
os esporos dos dentes-de-leão (tendo ainda em cima o resto encarquilhado da flor),
as urtigas (refúgio predilecto das borboletas),
que alongam sem cessar o emaranhado das suas raízes,
e as gotas de orvalho, intumescidas,
com a túnica de prata acetinada e tensa,
nas folhas cónicas dos pés-de-leão,
regressar ao jardim que trocara por este
esplendor mediterrânico que não foi criado para mim,
perdendo o florescer das malvas, tanto as de um azul suave
como as que se ostentam púrpureas, e o dos lábios do tomilho,
brancos e minúsculos,
o amadurecer dos cachos do sabugueiro
(todo o arbusto coberto de melros ruidosos),
dos molhos de avelãs com as suas gargantilhas
(todo o arbusto coberto de esquilos sempre a cuspir),
das pêras grandes e carnudas
(toda a árvore coberta de vespas que a vão roendo,
o chão todo coberto de caracóis a escorrer baba)
e também o estalar outonal
das primeiras folhas secas na nogueira.
E mais uma vez o senti:
o êxtase é sempre de mais,
a duração, pelo contrário, é que está certa.


POEMA À DURAÇÃO

É duração que acontece
quando, na criança,
que já não é criança nenhuma
– talvez já seja um ancião –,
volto a encontrar os olhos da criança.

A duração não existe na pedra
antiquíssima e eterna,
mas sim no transitório,
no que é brando e sensível.

Lágrimas da duração, tão raras!,
lágrimas de alegria.

Impulsos inconstantes da duração,
que não se podem pedir
nem numa prece implorar:
estais agora reunidos e articulados
para formar o poema.


Peter Handke nasceu nasceu a 6 de dezembro de 1942, em Griffen, Áustria. Autor de vasta obra literária que inclui, teatro, prosa (romance, ensaio, crônica, roteiro para o cinema) e poesia. Em 2019, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

* Traduções de José A. Palma Caetano.

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