terça-feira, 31 de outubro de 2023

Três poemas de Ida Vitale




FORTUNA

Anos a fio usufruir do erro
e de sua emenda,
ter podido falar, caminhar livre,
não existir mutilada,
não entrar, ou sim, em igrejas,
ler, ouvir a música querida,
ser na noite um ser como no dia.

Não ser casada por negócio,
medida em cabras,
padecer o governo de parentes
ou legal lapidação.
Não desfilar nunca mais
e não admitir palavras
que ponham no sangue
limalhas de ferro.
Descobrir por ti mesma
outro ser não previsto
na ponte do olhar.

Ser humano e mulher, nem mais nem menos.


A PALAVRA INFINITO

A palavra infinito é infinita,
a palavra mistério é misteriosa.
Ambas são infinitas, misteriosas.
Sílaba a sílaba tentas convocá-las
sem que uma luz proclame seu domínio,
uma sombra assinale a que distância delas
está a opacidade em que te moves.
Vão a algum ponto do clarão, se aninham,
assim que as abandonas livres no ar
esperando que uma asa inexplicável 
te leve até seu voo.

É mais que seu sabor o gosto desta vida?


O SILÊNCIO

Peço silêncio
e é pedir a fruta
na flor de verão,
um tanque com peixes
ao abrir-se a chuva.
É sinistro esperar?
Arderá uma granada
de inesperado amor
e sua paz crescerá,
não um pântano morto,
não dilúvio de gelo,
epitáfio caído,
mas um presente doce,
um beijo de boa noite,
resplendor de bom filho,
lâmpada carinhosa.

 
Ida Vitale nasceu no dia 2 de novembro de 1923, em Montevidéu. É poeta, tradutora, ensaísta e crítica literária integrante da chamada Geração de 45 no seu país natal. Por causa da ditadura militar exilou-se no México entre 1974 e 1984; ainda retornou ao Uruguai e em 1989 transferiu-se para os Estados Unidos, onde viveu até recentemente. Desde 2009, quando recebeu o Prêmio Octávio Paz, acumulou uma variedade de reconhecimentos, como Reina Sofía de Poesia Iberoamericana (2015) e o Prêmio Cervantes (2018). Entre os livros que publicou em poesia estão títulos como La luz de esta memoria (1949), Palabra dada (1953), Cada uno en su noche (1960), Oidor andante (1972), Jardín de sílice (1980), Parvo reino (1984), Sueños de la constancia (1988) e Procura de lo imposible (1998).
 
* Traduções de Heloisa Jahn. 

sábado, 7 de outubro de 2023

Dois poemas de Jon Fosse




ALGO SOBRE O ATOR

no que se move
como a vida
sempre em órbita
tem calma
e peso
como a própria vida
é pesada Para alguns
a vida é muito leve
e ao mesmo tempo pesada
e estes escapam do que acontece
e ali ficam
trêmulos
tímidos
sem saber o que dizer
não têm nada a dizer
e portanto algo deve ser dito E seguem em frente
a passos leves e retos como o vento
em frente vão
e então param
com o peso de si mesmos
à luz alheia
enquanto a vergonha
esmaece
e se eleva como um anjo guardião

Então as asas do anjo se abrem
sobre eles e os abraçam

E tudo está dito


TEM UMA PESSOA AQUI

Tem uma pessoa aqui
que então se vai
num vento
que some
se entranha
e esbarra nos movimentos da rocha
e se torna sentido
numa sempre nova unidade
daquilo que é
e daquilo que não é
numa quietude
em que o vento
vira vento
em que o sentido
vira sentido
em movimentos perdidos
de tudo que já foi
e ao mesmo tempo vem
de uma origem
em que o som carregava o sentido
antes de a palavra se dividir
e desde então jamais nos deixar
Mas ela está
em todo o passado e em todo o futuro
e está
em algo
que não existe
no limite extremo
entre aquilo que foi
e aquilo que virá a ser
É infinita e sem distância
no mesmo movimento
Clareia
e desaparece
e permanece
ao desaparecer
E reluz
em seu escuro
enquanto fala
do seu silêncio
Em lugar algum
Em toda parte
Está próximo
Está longe
e corpo e alma se encontram
num só
que é pequeno
e tão grande
como tudo que é
tão pequeno quanto nada
e onde está toda a sabedoria
e coisa alguma sabe
no seu mais íntimo
onde nada é separado
e ao mesmo tempo é ela mesma e todo o resto
no dividir
que não é dividido
no fronteiriço infinito Assim a deixo ir
numa presença óbvia
num movimento disperso
vagueando pelo dia
onde árvore é árvore
onde pedra é pedra
onde vento é vento
e onde palavras são uma unidade insondável
de tudo que já foi
de tudo que some
e assim permanece
como palavras de alento


Jon Fosse nasceu em Haugesund, Noruega, em 1959. Destacado dramaturgo, ele estreou na literatura como romancista, mas tem publicado conto, novela, poesia e ensaio, reunidos em mais de seis dezenas de livros que recebeu uma variedade de prêmios, incluindo o Prêmio Nobel de Literatura em 2023.

* Traduções de Leonardo Pinto Silva oferecidas aos leitores pela editora Fósforo.