ORFEU REBELDE
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
ÍCARO
O alcatraz
atira-se do alto.
Dobra as
asas, e cai.
Do céu à
terra é um salto.
Do céu ao
mar, um gesto.
Longe, fica
o protesto
Que não sobe
aonde vai.
O NARCISO
O desenho
impreciso
De cada
rosto humano, reflectido!
Mas o velho
Narciso
Continua
fiel e debruçado
Sobre o
ribeiro...
Porque não
há-de ver-se inteiro
Quem todo se
deseja revelado?
Devorador da
vida lhe chamaram,
A ele, artista, sábio e pensador,
Que
denodadamente se procura!
A movediça e
trágica tortura
De velar dia
e noite a líquida corrente
Que dilui a
verdade,
Quiseram-lhe
juntar a permanente
Ironia
Desse labéu
de pérfida maldade
Que turva
mais ainda a imagem fugidia
•
Miguel Torga nasceu em São Martinho de Anta, a
12 de agosto de 1907 e morreu em Coimbra a 17 de janeiro de 1995. Destacou-se
como contista e memorialista, mas sua vasta obra se espraia entre várias
formas, no romance, no teatro e no ensaio.
Sua poesia está publicada em mais de uma dezena de títulos; começou com Ansiedade,
em 1928, e passou por Abismo (1931), O outro livro de Job
(1943), Odes (1946), Cântico do homem (1950) e Câmara ardente,
o último título no gênero. A partir de 1997 começou a se organizar sua poesia
completa. Miguel Torga recebeu importantes galardões, como o Prêmio Camões.
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