GRAFIA 1
Água
significa ave
se
a sílaba é
uma pedra álgida
sobre o
equilíbrio dos olhos
se
as palavras
são densas de sangue
e despem
objectos
se
o tamanho
deste vento é um triângulo na água
o tamanho da
ave é um rio demorado
onde
as mãos
derrubam arestas
a palavra principia
A PORTA BRANCA
Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.
Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.
Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.
MARÉ
Quando a
maré baixa sob o céu róseo,
são a terra
e a areia que absorvem
o infindo
fumo e a neblina.
Além, um
pescador; além, uma gaivota;
são os
mesmos corpos movendo-se,
são a mesma
inércia da morte.
O pescador
revolve a areia
acocorado
sobre algas douradas
em busca de
mínimos seres vivos.
Um imenso
bando de gaivotas intenta
separar de
súbito o céu da terra
como se
estas águas da ria,
tão lisas,
fossem a antimatéria.
•
Fiama Hasse Pais Brandão nasceu no dia 15 de agosto de 1938, em Lisboa. Foi dramaturga,
tradutora e poeta. Formada em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa,
exerceu atividade de pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários. Seu primeiro livro foi Morfismos, publicado no âmbito da iniciativa Poesia 61,
coletânea que refletia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na
sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. "A criação
poética de Fiama Hasse Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão
original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à
erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso
e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a
linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um
tempo primordial", sublinha o verbete sobre a poeta editado pela Assírio & Alvim. Destacam-se na sua bibliografia, dentre outros títulos Novas visões do passado (1974), Área branca (1978), e Três rostos (1989). Morreu em Lisboa no dia
20 de Janeiro de 2006.
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