DESASSOSSEGO
Levanto os
olhos.
Tinha-os
sobre uma chapinha circunflexa, uma
espécie de
oito luminoso, fixos no chão.
Olhos circunvagantes,
um momento parados.
Tanta inquietação!
Rodopiante, como
as moscas gulosas, teimosas,
insaciáveis.
Coração indefeso...
Agora o sol
é já um sapatinho.
Uma meiazinha
de criança, minúscula.
Mas de si
que deixará esta minaz luta, este desassossego?
Cansaço e
severidade.
Agora é uma
moeda redondinha.
Cada vez
mais pequena.
Luz e forma
sempre nova...
Agora é só
uma dedada, some-se.
Agora mais
nada.
Igualdade.
O BELO VERSO
Apetecia-me
escrever um belo verso.
Sonoro,
elegante, correcto, de mármore!
Nele por o
que outros me inspirassem.
O que ali
aquele poeta estava cantando.
Ele o cantava
e eu o repetia.
Acrescentava,
desdobrava, acrescia da minha ansiedade.
Mas verso bem
feito!
Cheio do que
se sonha, não do que se sente.
Parece-me
pobre o que sinto.
E vulgar.
Estes olhos
que sem querer se envidraçam, fúteis,
sem recato,
infantis, esta voz insegura, enfim,
tudo isto...
Que figura
iriam fazer dentro de um verso elegante, lapidar?
Belo verso
trair-te-iam, roubar-te-iam toda a graça
e até a
ressonância, o êxtase e aquela espécie de
embalo que
ao espírito sempre dás.
Mas sinceramente
me apetecia escrever um verso
de mármore,
belo!
Tudo, tudo
por causa daquele poema...
Daquela exaltação
do desejo, daquele arrebatamento lírico, infixo, daquela sensualidade
espumosa...
Meu
velhíssimo verso falhado, meu, não o dos outros...
Com que te
haveria eu de ilustrar?
Com que te
encher, meu divino, lúcilo, aéreo,
palavroso poema
do nada?
•
Irene Lisboa
nasceu na Quinta da Murzinheira em Arruda dos Vinhos no dia 25 de
dezembro de 1892. Foi uma poeta, contista e pedagoga. Fez seus estudos na
Escola Normal Primária de Lisboa, em Ciências da Educação na Suíça, França e
Bélgica. Estreou na literatura em 1926 com um livro de contos para
crianças, Treze contarelos; na poesia,
o primeiro a publicar foi Um dia e
outro dia... Diário de uma Mulher (1936), publicado sob o pseudônimo
de João Falco; com o mesmo pseudônimo publicou ainda Outono havias de vir (1937) e Solidão. Notas do punho de uma mulher (1939). Irene Lisboa
morreu em Lisboa no dia 25 de novembro de 1958.
Que boa lembrança. Apenas gostaria de fazer uma correção. O terceiro texto não é um poema, mas o início do livro "Solidão", é uma pequena crónica que bem podia ser um poema, até porque tem uma das mais belas frases da nossa literatura: "A alma é um pássaro, está sempre a querer cantar, mas tudo a atordoa."
ResponderExcluirJorge, obrigado por sua visita e comentário. A correção foi feita.
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