YOU ARE WELCOME TO
ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte
violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
PASTELARIA
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmera escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os
olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã à bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
•
Mário Cesariny nasceu a 9 de
agosto de 1923 em Lisboa, cidade onde viveu até a 26 de novembro de 2006. Sua
incursão pelo universo da literatura principia do convívio com os autores do
neo-realismo e mais adiante do surrealismo, depois de uma estadia na França,
onde convive com André Breton. Tonar-se um dos fundadores do Grupo Surrealista
de Lisboa, no retorno ao seu país e começa a construir sua obra literária que aparece
em revistas como a Pirâmide. O primeiro livro data de 1950, Corpo
visível e depois veio, em ritmo constante outras dezenas deles, entre os
quais destacam-se Pena capital (1957), As mãos na água e a cabeça no
mar (1972), O Virgem Negra (1989), Titânia (1994) e A alma
e o mundo (1997).