terça-feira, 8 de maio de 2012

Três poemas de Ruy Belo



A PRIMEIRA PALAVRA

Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
à superfície do tempo


ELOGIO DA AMADA

Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados
Vem sentada na nova primavera
cercada de sorrisos no regaço lírios
olhos feitos de sombra de vento e de momento
alheia a estes dias que eu nunca consigo
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe
A amada é bem a infância que vem ter comigo
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos
e mortes como antes nunca mais
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria
no limiar da nossa diferença
Os nossos átrios são para os seus pés solitários
Já todos nós esquecemos a casa dos pais
ela enche de dias as nossas mãos vazias
A dor é nela até que deus começa
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor
Que importa sermos de uma só manhã e não haver em volta
árvore mais açoitada pelos diversos ventos?
Que importa partirmos num desmoronar de poentes?
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão
multiplicando-lhe a ausência que importa
se onde pomos os pés é primavera?


CONDIÇÃO DA TERRA

A minha amada chega no ar dos pinhais
cingida de resina vária como o cedro
e a maresia. Levanta-se lábil
e compromete solene o séquito da aurora
Ou vem sobre os rolos do mar
cheia de infância pequena de destino
Também a trazem às vezes aves como a pomba
que os mercadores ouviram
em países distantes. Tem brilhos
nos olhos de veado como se buscara
a grande fonte das águas
Que nome tem a minha amada?
Como chamá-la se nenhum conceito a contempla?
Em que palavra envolvê-la?
A minha amada não é da raça de estar
como o homem posta sobre a terra
Que pés lhe darão
este destino de serem
mais ágeis do que nós os sonhos?
Ombro como o meu será lugar para ela?
Que anjo em mim a servirá?
Ai eu não sei como recebê-la
Eu sou da condição da terra
que tacteio de pé. Quase árvore
não me vestem convenientemente as estações
nem me comenta a sorte
o canto pontiagudo dos pássaros
Vem domesticamente minha amada
Receber-te-ei aquém dos olhos
com este humilde cabedal de dias

Mas basta que venhas quando eu diga
do alto de mim próprio sim à terra

Ruy Belo nasceu a 27 de fevereiro de 1933, em São João da Ribeira, Rio Maior. Sua atividade literária o fez um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa da segunda metade do século XX; dela saíram livros como Aquele grande rio Eufrates (1961), O problema da habitação (1962), Boca bilingue (1966), Homem de palavras e Na senda da poesia (1969), Transporte no tempo (1973), A margem da alegria (1974), entre outros. Também escreveu ensaios e se destacou na tradução de autores como Blaise Cendrars, Raymond Aron, Jorge Luis Borges e Federico García Lorca. Morreu a 8 de agosto de 1978, em Queluz, Sintra.