sábado, 26 de maio de 2012

Dois poemas de Natália Correia



BILHETE PARA O AMIGO AUSENTE
 
Lembrar teus carinhos induz
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.

Teu luar de ontem na cintura
é ainda o vestido que trago
seda imaterial seda pura
de criança afogada no lago.

Os motores que entre nós aceleram
os vazios comboios do sonho
das mulheres que estão à espera
são o único luto que ponho.


COMO DIZER O SILÊNCIO?
 
Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.
 
O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.
 
Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?
 
Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.
 
Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.
 
E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.
 
Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão. 
 
 
 
Natália Correia nasceu a 13 de setembro de 1923, na Ilha de São Miguel. Escreveu romance, ensaio, teatro e poesia. Desta última lavra, saíram mais de duas dezenas de títulos; alguns deles são: Rio de nuvens (1947), Poemas (1955), Cântico do país emerso (1961), As maçãs de Orestes (1970), O armistício (1985) e Sonetos românticos (1990). No mesmo ano de publicação do seu último livro de poemas, em 1990, recebe o Grande Prêmio de Poesia APE. Morreu a 16 de março de 1993, em Lisboa.