Lente
De tarde tudo começava
e lá fora a elipse do vento
desenhava a casa e circulava
um perímetro maior de desalento
e lá fora a elipse do vento
desenhava a casa e circulava
um perímetro maior de desalento
Era como se a poesia me
ofuscasse
e o corpo em suspensão se mantivesse
à espera da morte ou regressasse à vida
depois do amor que se fizesse
e o corpo em suspensão se mantivesse
à espera da morte ou regressasse à vida
depois do amor que se fizesse
Era a lente de aumentar
essa paisagem
quase familiar mas indiferente
de rostos junto ao teu
Mas a imagem diminui
agora o mundo lentamente
quase familiar mas indiferente
de rostos junto ao teu
Mas a imagem diminui
agora o mundo lentamente
Variação
Regressas sempre aos
versos
A arte torpe das palavras
A fala o fingimento de verdade
A arte a canção dos mais pobres
de todos os sobreviventes
Calas quanto sabes mas escreves
Por metáforas e símbolos
as ruínas do corpo e do palato
essa hostil lâmpada
sabes que corremos como cortina
escura o sentido literal da palavra
Arda no silêncio com que
nos afastamos ou morremos
a palavra da esperança
No longo silêncio que se arrasta
nenhuma flor nos basta
A arte torpe das palavras
A fala o fingimento de verdade
A arte a canção dos mais pobres
de todos os sobreviventes
Calas quanto sabes mas escreves
Por metáforas e símbolos
as ruínas do corpo e do palato
essa hostil lâmpada
sabes que corremos como cortina
escura o sentido literal da palavra
Arda no silêncio com que
nos afastamos ou morremos
a palavra da esperança
No longo silêncio que se arrasta
nenhuma flor nos basta
Um barco no rio (2002, 2009)
Rompem barcos
em Lisboa
na barra e
entram devagar
na lâmina da página
comigo a olhar
a ossatura do poema
a escrever-se no seu
máximo equilíbrio
em Lisboa
na barra e
entram devagar
na lâmina da página
comigo a olhar
a ossatura do poema
a escrever-se no seu
máximo equilíbrio
Um barco no rio
foi o título
que dei ao livro
onde falei desse animal
mnemónico que traz
à superfície os meus olhos
foi o título
que dei ao livro
onde falei desse animal
mnemónico que traz
à superfície os meus olhos
a esse animal do sul
em aresta viva dedico
afinal desde que escrevo
a viva memória do que lembro
em aresta viva dedico
afinal desde que escrevo
a viva memória do que lembro
Resposta a Drummond
É sempre no meu sempre
aquele nunca
é sempre nesse nunca aquele agora
é sempre nesse agora aquele nada
é sempre nesse nunca aquele agora
é sempre nesse agora aquele nada
No mesmo nada encontro
sempre tudo
mesmo se o mundo é nada sempre assim
mesmo se assim tudo me desperta
mesmo se o mundo é nada sempre assim
mesmo se assim tudo me desperta
e eu me desperto a
adormecer no fim
de cada dia de trabalho errado
em cada hora de um amor mal feito
de cada dia de trabalho errado
em cada hora de um amor mal feito
e digo mesmo se este
mundo vale
a expectativa de querer ser sempre
aquela esp’rança onde o bem e o mal
a expectativa de querer ser sempre
aquela esp’rança onde o bem e o mal
se aliam sempre para quem
conserva
o sonho ou a fúria de não estar sonhando
Mas novamente dói a dor no peito
o sonho ou a fúria de não estar sonhando
Mas novamente dói a dor no peito
e dói no corpo o que nos
vai passando
mágoas ou risos ou o grito dado
e logo atirado para um vale escuro
mágoas ou risos ou o grito dado
e logo atirado para um vale escuro
onde não oiçamos a revolta
infinda
de vivermos os dias nesta escura selva
a que nem Dante chamou talvez de vida
de vivermos os dias nesta escura selva
a que nem Dante chamou talvez de vida
a que chamamos coisa e
porém amamos
Sempre este querer de violência tanta
e esta crença de que o canto estale
Sempre este querer de violência tanta
e esta crença de que o canto estale
e o dia venha porque nós
lutamos
para além das forças que supomos nossas
para além dos sonhos que já não esperamos
para além das forças que supomos nossas
para além dos sonhos que já não esperamos
para além do verso e do
corpo gasto
Sempre este homem que se vai cansando
sempre estes ossos em que equilibramos
Sempre este homem que se vai cansando
sempre estes ossos em que equilibramos
esta carne frágil este
dia vasto
esta vida feita no que é morte nela
este amor sujeito ao que é sempre efémero
esta vida feita no que é morte nela
este amor sujeito ao que é sempre efémero
este ódio ao mundo que é
amor eterno
CORTEZ, António Carlos. Depois de Dezembro. Lisboa: Licorne,
2010.
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