ARTE POÉTICA
Fitar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.
No dia ou no ano ver um símbolo
Dos dias de um homem e de seus anos,
Transformar o ultraje desses anos
Em música, em rumor e em símbolo,
Na morte ver o sonho, ver no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes certo rosto
Contempla-nos do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, sem prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
A CHUVA
A tarde se aclarou de inesperado
Porque já cai a chuva minuciosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que sem dúvida ocorre no passado.
Esta chuva que agora ofusca os vidros
Vai alegrar em subúrbios perdidos
As pretas uvas de uma parra no horto
Que deixou de existir. Esta molhada
Tarde me traz a voz, a voz ansiada,
De meu pai que retorna e não está morto.
•
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos
Aires a 24 de agosto de 1899. Escreveu prosa (contos e ensaios) e poesia,
gênero pelo qual sempre gostaria de ser reconhecido. Dentre suas principais
obras, destacam-se Ficções (1944), O Aleph (1949); na poesia é o
autor de títulos como Fervor de Buenos Aires (1923), O fazedor
(1960), O outro, o mesmo (1969), Elogio da sombra (1969), Os
conjurados (1985). Morreu a 14 de junho de 1986, em Genebra.
* Tradução Josely Vianna Baptista
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