terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Dois poemas de Alexandre O’Neill





Cão

Cão passageiro,
cão estrito, cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!


***


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O’Neill nasceu em Lisboa a 19 de dezembro de 1924, cidade onde passou toda a vida até o dia 21 de agosto de 1986. Colaborou largamente com a imprensa portuguesa, destacando-se suas colunas no Diário de Lisboa, em A Capital e no Jornal de Letras. Sua estreia acontece ainda em 1948 com A ampola miraculosa. Fortemente marcado pelas expressões do surrealismo se fez um dos importantes nomes dessa vanguarda em Portugal. Publicou ainda obras como No reino da Dinamarca (1958), Poemas com endereço (1962), Feira cabisbaixa (1965), A saca de orelhas (1979), entre outras. Escreveu prosa, da qual se destaca Uma coisa em forma de assim (1980); traduziu autores como Maiakóvski, Bertolt Brecht, Alfred Jarry; e compôs roteiros para o cinema e a televisão. 

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