Não me fales agora de
outras terras,
de outros céus, de outro
tecto, de outra cama.
Continua a contar os meus
orgasmos,
já que essa aritmética te
exalta;
a percutir de cânticos
três grutas,
de gôndola sulcando todas
elas;
a trejurar que não, que
não, que nunca
assim, nem quase assim,
com ninguém mais.
Nasces e morres, morres e
renasces:
como hás-de te lembrar de
tantas vidas?
Quero, não quero, já não
sei se quero
esses frutos do trópico,
esse cálido
país de que tu falas. É
tão triste
o modo como dizes que
talvez.
*
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.
*
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.
*
Se é sem dúvida Amor esta
explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das
memórias,
tão longe da verdade e da
invenção;
o espelho deformante; a
profusão
de frases insensatas,
incensórias;
a cúmplice partilha nas
histórias
do que os outros dirão ou
não dirão;
se é sem dúvida Amor a
cobardia
de buscar nos lençóis a
mais sombria
razão de encantamento e
de desprezo;
não há dúvida, Amor, que
te não fujo
e que, por ti, tão cego,
surdo e sujo,
tenho vivido eternamente
preso!
Ternura
Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada
Olho a roupa no chão que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio…
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
A secreta viagem
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
•
David Mourão-Ferreira nasceu a 24
de fevereiro de 1927, em Lisboa. Sua atividade literária se desenvolve desde
cedo com a publicação de A viagem, em 1950. Este livro de poesia inaugura
uma extensa obra nesse gênero, mas Mourão-Ferreira também publicou prosa
(novela, conto, romance e ensaio). Do romance, por exemplo, destaca-se com Um
amor feliz, livro que lhe valeu vários e importantes prêmios, como o Grande
Prêmio de Romance e Novela APE/ DGLB, o Prêmio Literário Município de Lisboa e
o Prêmio D. Dinis — todos pela publicação da obra, em 1986. Na poesia
destaca-se ainda por Tempestade de verão (1954), Os quatro cantos do
tempo (1958), Lira de bolso (1969), Matura idade (1973), As
lições do fogo (1976), Os ramos e os remos (1985), Música de cama
(1994), entre outros. Morreu a 16 de junho de 1996.
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