Da cidade
Quem vê à entrada da cidade
o sangue vertido por antigos guerreiros?
Quem ouve o golpe das armas
e o chuvisco noturno das mulas?
Quem guia a coluna de fumaça e dor
que as batalhas deixam ao cair da tarde?
Nem o mais miserável, nem o mais vicioso
nem o mais débil e esquecido dos habitantes
recorda algo desta história.
Hoje, quando o amanhecer cresce nos parques
o odor dos pinheiros recém cortados,
esse aroma resinoso e brilhante
como a lembrança vaga da fêmea magnífica
ou como a dor de uma besta indefesa,
hoje, a cidade se entrega inteiramente
a sua névoa suja e a seus ruídos cotidianos.
E, no entanto o mito está presente,
subsiste nos cantos onde os mendigos
inventam uma trêmula cadeia de prazer,
nos altares que a traça corrói
e cobre de pó com manso e terso olvido,
nas portas que se abrem de repente
para mostrar ao sol um opulento torso
de mulher que desperta entre laranjeiras
- branda fruta morta, ar vão de alcova –.
Na paz do meio-dia, nas horas do alvorecer,
nos trens sonolentos carregados de animais
que choram a ausência de suas crias,
ali está o mito perdido, irresgatável, estéril.
Estela para Arthur Rimbaud
Senhor das arenas
recorres teus domínios
e desde o mirante
da mais alta torre
partem tuas ordens
que vão diluir-se
no vazio surdo
do estuário.
Senhor das armas
ilusórias, há tempos
que o olvido trabalha
teus poderes,
que teu nome, teu reino,
a torre, o estuário,
as arenas e as armas
se apagaram para sempre
do já roto tapete
que as narrava.
Não agites mais
teus corroídos estandartes.
Na quietude, no silêncio,
hás de penetrar
abandonado
as tramas funerais.
•
Álvaro Mutis nasceu em Bogotá em 1923. Apenas dois anos depois, a família mudou-se para Bruxelas, onde fez toda suas primeiras letras, educando-se em francês. O retorno para a Colômbia acontece em 1939 e em 1942 começa a trabalhar no rádio, passando para o periódico Vida como chefe de redação. Sua estreia na literatura é com La balanza, livro publicado com Carlos Patiño, em 1948. Quatro anos a seguir, sai Los elementos del desastre, ocasião quando já atuava na publicidade, mais tarde nas relações públicas, funções que o levaram a ir viver no México. Antes da prisão de um ano e meio, ainda publicou Reseña de los hospitales de ultramar e na saída do cárcere havia escrito Cuatro relatos, Los trabajos perdidos e Diario de Lecumberri. A vida dedicada à poesia só o alcançaria depois de viajar a América Latina como funcionário de distribuidoras estadunidenses para a venda séries televisivas. Alguns dos vários reconhecimentos recebidos por sua obra foram os prêmios Príncipe de Astúrias e Rainha Sofía de Poesia. Álvaro Mutis morreu na Cidade do México em 2013.
* Traduções de Antonio Miranda.
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