quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Carlos Drummond de Andrade: dois inéditos

Carlos Drummond de Andrade. Minas Gerais, 1930

É Eucanaã Ferraz em seu texto "Modos de morrer" publicado na edição dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, dedicada ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Ao atentar para o tema da morte como um dos motivadores da poesia drommundiana, o estudioso recorre, dentre outros textos, um editado no número 4, de dezembro de 1927, da revista Verde

Convite ao suicídio

a Mário de Andrade

Vamos dar um tiro no ouvido?
Vamos?
Largar essa vida
largar esse mundo
comprar o último bilhete
e desembarcar na estação central do Infinito perante
                            a comissão importante de arcanjos
                            bem-aventurados profetas - vivoooo!

Vamos acabar com isso,
dar o fora nas aporrinhações.
Adeus contrariedades.
Nunca mais desastres
nem calos
nem desejos
nem percevejos nem nada.

Só um gesto
PUM PUM
Acabou-se.

Já estou cansado da Metro, da Paramount,
de todas as marcas inclusive a barbante.
A fita pau.
Repetir é casar dobrado.
Me dá o braço,
vamos s'embora.

A vida foi feita pros trouxas
que esperdiçam as riquezas do coração
nessa lenga-lenga infindável
e depois vão dormir o sono abençoado dos burros
                               justos pra recomeçar no dia
                               seguinte cedinho.

Vida que não é vida...

(Suspirei
foi pra abrir o peito,
soltar o último desgosto.)

Estou pronto pra sair.
Vamos sair juntos?
É mais divertido
e enche mais os jornais: um suicídio duplo, hein?
                             que mina pros repórteres e pros
                             cidadãos que gostam de misturar
                             o café matinal com histórias
                             de Smith and Wess.

A noite está fria.
Noite indiferente.

Vamos morrer daqui a um minuto
(se você não roer a corda)
e no entanto o Cruzeiro do Sul parece dizer: que m'importa.
E astros águas e terras repetem maquinalmente: que m'importa.

Eles têm razão.
Nós também temos.
Dois contribuintes de menos,
que perderá o Brasil com isso.
No frio da noite os amorosos multiplicam a espécie.
O Brasil é tão grande.
Mais grande que o mundo inteiro.
Estamos caceteados, vamos s'embora.

Adeus minha terra
terra bonita
pintada de verde
com bichos esquisitos e moleques treteiros,
abençoada pelo Deus brasileiro das felicidades e descarrilamentos.
Meu povo
amigos inimigos
canalha miúda
me despeço de todos sem exceção.
Apesar de ser inútil,
lembrem de mim nas suas orações.

Está na hora.
Agora vamos.
Me acompanhe nesse passo
tão complicado.
Me ajude a morre, 
morre com a gente,
irmãozinho.

Vamos fazer a grande besteira:
rebentar os miolos
e ir receber no céu o castigo de nossos amores
                    e o prêmio de nossas devassidões.


O outro poema também revelado por Eucanaã Ferraz foi escrito por Drummond numa correspondência para o amigo Cyro dos Anjos; este nunca veio a ser publicado em livro ou em periódico.

Maria ao lado do poeta

Não seja bobo, poeta.
O infinito está ao seu lado.
Maria está ao seu lado.
Provisoriamente ela é o infinito
e quem sabe se para sempre.

Mas não olhe lá para fora,
outras Marias estão passando
e dizendo que você é bobo,
que você não sabe, poeta,
como é bom amar no Brasil.

Olhe bem para o seu lado,
olhe Maria nos olhos,
nas mãos, no corpo, nos sapatos,
em tudo que ela tem de bom.
Depois feche os olhos sem pressa
dizendo: Maria é mesmo muito boa.
Depois fume, depois jogue víspora,
depois dê um tiro no crânio,
faça qualquer coisa, poeta,
Maria está ao seu lado.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Estreou na literatura em 1930 com a publicação de Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais da literatura brasileira como Sentimento do mundoA rosa do povo e Claro enigma. Morreu no Rio de Janeiro em 1987. 

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