Se acaso, alheado até do que sonhei,
Me encontro neste mundo a sós comigo,
E, fiel ao que eu mesmo desprezei,
Meus passos falsos e verdadeiros sigo,
Desperta em mim, contrário ao que esperei
Desta espécie de fuga, ou só abrigo,
Não o ajustar-me com a externa lei,
Mas o essa lei tomar como castigo.
Então, liberto, já pela esperança
Deste mundo de formas e mudança,
Um pouco atinjo pela dor e a fé
Outro mundo, em que sonho e vida são
Num nada nulo, igual em escuridão,
E ao fim de tudo surge o Sol do que é.
28-9-1933
Em que parte de que caminho
Vou eu, que não sei onde vou?
Na rua sei onde é que estou.
Na vida ignoro de onde vou vizinho.
Não sei onde há esquina ou beco
Na vida vã que vou seguindo.
Sei que vou indo, ou não vou indo.
Não sei se, indo ou não indo, acerto ou peco.
Ah, a desgraça nossa, que é
Na vida escura caminhar
Por ir, e nunca por andar!
Que farei? Ir, ir estúpido e com fé...
2-10-1933
Tudo me cansa. Nada me consola.
O que fiz fi-lo em vão.
Tu, tocando arranjos de viola
Dás-me uma outra emoção.
Nem me viste, mas vieste. Isso me basta.
Toca sem dor nem fim.
E a tua música, vazia, contrasta
Com o pleno de mim.
Quanto levantes baixa-me, mas antes
Quero eu teu soluçar
Que a vida toda com os cambiantes
De dormir sem sonhar.
22-2-1934
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Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas das literaturas de língua portuguesa, a sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. Morreu em 30 de novembro de 1935.
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