Motivo
Eu canto porque o
instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas
fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se
edifico,
se permaneço ou me desfaço,
― não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
se permaneço ou me desfaço,
― não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção
é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
― mais nada.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
― mais nada.
Discurso
E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão
do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.
deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para
longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
Também procurei no céu a
indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou,
cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem
sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
Retrato
Eu não tinha este rosto
de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos
sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta
mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
― Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Tão simples, tão certa, tão fácil:
― Em que espelho ficou perdida
a minha face?
•
Cecília Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901,
no Rio de Janeiro, cidade onde passou toda sua vida e de onde saiu para muitas
viagens: nos anos quarenta para os Estados Unidos, onde deu palestras na
Universidade do Texas, em seguida, México, Argentina, Uruguai, Chile...
Professora e profunda interessada nas questões sobre educação no Brasil,
Cecília começou sua carreira literária com a publicação de Espectros, em
1919. Depois desse livro se desenvolveu uma extensa bibliografia que transita
entre a poesia, gênero que lhe deu reconhecimento, e na prosa. Morreu no dia 9
de novembro de 1964.
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