quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Três poemas de Cecília Meireles


Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
 não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
 mais nada.


Discurso

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim? 


Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
 Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro, cidade onde passou toda sua vida e de onde saiu para muitas viagens: nos anos quarenta para os Estados Unidos, onde deu palestras na Universidade do Texas, em seguida, México, Argentina, Uruguai, Chile... Professora e profunda interessada nas questões sobre educação no Brasil, Cecília começou sua carreira literária com a publicação de Espectros, em 1919. Depois desse livro se desenvolveu uma extensa bibliografia que transita entre a poesia, gênero que lhe deu reconhecimento, e na prosa. Morreu no dia 9 de novembro de 1964. 

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