MANIFESTO
(FALO POR MINHA DIFERENÇA)[1]
Não sou
Pasolini pedindo explicações
Não sou
Ginsberg expulso de Cuba
Não sou uma
bicha disfarçada de poeta
Não preciso
de disfarces
Aqui está
minha cara
Falo por
minha diferença
Defendo o
que sou
E não sou
tão esquisito
Me repugna a
injustiça
E suspeito
dessa dança democrática
Mas não me
fale do proletariado
Porque ser
pobre e bicha é pior
Há que ser
ácido para suportar
É ter que
dar voltas nos machinhos da esquina
É um pai que
te odeia
Porque o
filho desmunheca
É ter uma
mãe de mãos marcadas pelo cloro
Envelhecidas
de limpeza
Embalando de
doença
Por maus
modos
Por má sorte
Como a
ditadura
Pior que a
ditadura
Porque a
ditadura passa
E vem a
democracia
E desvia
para o socialismo
E então?
Que farão
com nossos companheiros?
Irão nos
amarrar às tranças em fardos
com destino
a um sidário[2] cubano?
Irão nos
enfiar em algum trem para parte alguma
Como no
barco do general Ibáñez
Onde
aprendemos a nadar
Mas ninguém
chegou até à costa
Por isso
Valparaíso apagou suas luzes vermelhas
Por isso as
casas de caramba[3]
Brindaram
com uma lágrima negra
Aos
carneiros comidos pelos caranguejos
Este ano que
a Comissão de Direitos Humanos
Não lembra
Por isso
companheiro te pergunto
Existe ainda
o trem siberiano
da
propaganda reacionária?
Esse trem
que passa por suas pupilas
Quando minha
voz fala demasiado doce
E você?
Que fará com
essa lembrança de meninos
Nos pajeando
e outras coisas
Nas férias
de Cartagena?
O futuro
será em preto e branco?
O tempo
correrá noite e dia
sem
ambiguidades?
Não haverá
uma bichona em alguma esquina
desequilibrando
o futuro de seu novo homem?
Vão nos
deixar bordar pássaros
nas
bandeiras da pátria livre?
O fuzil eu
deixo a você
Que tem o
sangue frio
E não é medo
O medo foi
indo embora de mim
Atacando com
facadas
Nos
inferninhos sexuais onde andei
E não se
sinta agredido
Se te falo
dessas coisas
E te olho o
volume
Não sou
hipócrita
Acaso os
peitos de uma mulher
Não o faz
baixar os olhos?
Você não
acredita
Que sozinhos
na serra
Algo nos
aconteceria?
Embora
depois me odiasse
Por
corromper sua moral revolucionária
Tem medo que
se homessexualize a vida?
E não falo
de te enfiar e tirar
e tirar e te
enfiar somente
Falo de
ternura companheiro
Você não
sabe
Como custa
encontrar o amor
Nestas
condições
Você não
sabe
O que é
carregar essa lepra
As pessoas
ficam à distância
As pessoas
compreendem e dizem:
É viado mas
escreve bem
É viado mas
é um bom amigo
Super-boa-onda[4]
Eu não sou
boa-onda
Eu aceito o
mundo
Sem lhe
pedir essa boa-onda
Mas ainda
assim riem
Tenho
cicatrizes de risos nas costas
Você
acredita que eu penso com o pau
E que à
primeira parrillada[5] da CNI[6]
Eu ia soltar
tudo
Não sabe que
a masculinidade
Nunca a
aprendi nos quartéis
Minha
masculinidade me ensinou a noite
Atrás de um
poste
Essa
masculinidade de que você se gaba
Te enfiaram
em um regimento
Um milico
assassino
Desses que
ainda estão no poder
Minha
masculinidade não recebi do partido
Porque me
rechaçaram com risadinhas
Muitas vezes
Minha
masculinidade aprendi militando
Na dureza
desses anos
E riram da
minha voz afeminada
Gritando:
vai cair, vai cair
E embora
você grite como homem
Não
conseguiu que caísse
Minha
masculinidade foi amordaçada
Não fui ao
estádio
E me peguei
aos trancos pelo Colo Colo[7]
O futebol é
outra homossexualidade encoberta
Como o boxe,
a política e o vinho
Minha
masculinidade foi morder as provocações
Engolir a
raiva para não matar todo mundo
Minha
masculinidade é me aceitar diferente
Ser covarde
é muito mais duro
Eu não dou a
outra face
Dou o cu
companheiro
E esta é a
minha vingança
Minha
masculinidade espera paciente
Que os
machos fiquem velhos
Porque a
esta altura do campeonato
A esquerda
corta seu cu flácido
No
parlamento
Minha
masculinidade foi difícil
Por isso não
subo nesse trem
Sem saber
aonde vai
Eu não vou
mudar pelo marxismo
Que me
rechaçou tantas vezes
Não preciso
mudar
Sou mais
subversivo que vocês
Não vou
mudar somente
Pelos pobres
pelos ricos
Ou outro
cachorro com esse osso
Tampouco
porque o capitalismo é injusto
Em Nova
Iorque as bichas de beijam na rua
Mas esta
parte deixo para você
Que tanto se
interessa
Que a
revolução não se apodreça completamente
A vocês
entrego esta mensagem
E não é por
mim
Eu estou
velho
E sua utopia
é para as gerações futuras
Há tantas
crianças que vão nascer com a asinha quebrada
E eu quero
que voem companheiro
Que sua
revolução
Dê a eles um
pedaço de céu vermelho
Para que
possam voar
Tradução e Notas de Nina Rizzi para a Revista Ellenismos, 27: des-construindo o gênero.
[1] Este texto foi lido como intervenção em um ato político
da esquerda em setembro de 1986, em Santiago, Chile. Leia o poema original
aqui
[2] Apesar de Sidario ser um nome próprio muito comum no
Chile, o autor o usa como substantivo para denominar clínicas para tratamento
de soropositivos. Cf.: livro de crônicas de Pedro Lemebel chamado “Loco afán:
crónicas de sidariorio”, com textos que tratam, sobretudo, da marginalização de
travestis e AIDS.
[3] Casas onde se cantam tonadillas. O termo alude à
cantora tonadillera do século XVIII Maria Antónia Fernández, cujo
apelido era Caramba.
[4] No original “buena-onda”, um trocadilho: alegre/ fresco.
[5] Prato típico chileno com diversos tipos de carne e frutos
do mar, naturalmente no poema se trata de um trocadilho.
[6] CNI – Central Nacional de Informaciones de Chile – foi um
organismo de inteligência do regime militar chileno. Criada em 1977, foi
responsável por inúmeros casos de infiltração política, assassinatos,
sequestros e tortura aos opositores do regime, além de estar relacionada ao
roubo de banco e o tráfico de drogas e armas. Foi dissolvida em 1990, pouco
antes do retorno da democracia.
Muitos de seus agentes então foram realocados
em outros cargos públicos, inclusive de segurança.
[7] Time de futebol chileno.
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