Teve um tempo que amor
era tia Clara vestida de branco na janela do trem
que levava a Porto Alegre. Com baldeação
em Santa Maria da Boca do Monte...
Hoje é supositório contra hemorroidas:
sete e quinhentos a caixinha na farmácia
mais suja do Arouche
Julho de 1978
FEVER 77°
Deixa-me entrelaçar
margaridas
nos cabelos
de teu peito.
Deixa-me
singrar teus mares
mais remotos
com minha
língua em brasa.
Quero um
amor de suor e carne
agora:
enquanto
tenho sangue.
Mas deixa-me
sangrar teus lábios
com a adaga
de meus dentes.
Deixa-me
dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de
minhas unhas.
Quero um
amor de faca e grito
agora:
enquanto
tenho febre.
14 de janeiro de 1975
PRESS TO
OPEN
Estavam ali
as portas
janelas e
varandas.
Estavam ali
na fronteira
do olhar
onde o de
dentro encontra
justamente
com o de
fora.
Nesse ponto
exato
elas
estavam.
Bastava um
gesto.
Mas o meu
estar parado
era maior do
que eu.
Estar
parado/estar vivo:
a mesma
incompreensão
e medo
entre mim e
aquele estar das coisas.
Estar ali
como nunca
ter chegado.
Estar ali
como ter
visto absolutamente tudo.
Estar ali
por estar
ali.
E além de
mim
o que eu não
ousava.
Ah:
relembro a
amplidão dessas varandas
os pequenos raios de luz
os pequenos raios de luz
nos vidros
coloridos das janelas.
Revejo a
dura consistência da porta
cerrando seu segredo. E me retomo
ali
no imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
agora
escancarar portas e janelas
para sair nu pelas varandas
desvairado e nu
— um profeta, um louco, um santo.
Sair para o vento, o sol, as tempestades,
as neves, as quedas de estrelas e Bastilhas,
cerrando seu segredo. E me retomo
ali
no imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
agora
escancarar portas e janelas
para sair nu pelas varandas
desvairado e nu
— um profeta, um louco, um santo.
Sair para o vento, o sol, as tempestades,
as neves, as quedas de estrelas e Bastilhas,
o cheiro de
jasmins entontecendo os quintais.
(Pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como o que não fui.)
Mas continuo
ali.
Aqueles espaços
permanecem tão mortos de mim
como um corpo que se ama
e não se toca.
(Pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como o que não fui.)
Mas continuo
ali.
Aqueles espaços
permanecem tão mortos de mim
como um corpo que se ama
e não se toca.
Londres, 4
de fevereiro de 1974.
•
Caio
Fernando Abreu nasceu a 12 de setembro de 1948, em Santiago, Rio Grande do Sul.
Destacou-se como escritor pela narrativa curta com o livro Morangos mofados.
Sua atividade literária, sempre diversa, incluiu ainda trabalhos como dramaturgo
e poeta. Da poesia, restaram pouco mais de uma centena de textos escritos de
entre 1960 e 1990. Morreu no dia 25 de fevereiro de 1996 em Porto Alegre.
.........
Os dois últimos poemas são oferecidos por Antonio Miranda a partir de ABREU, Caio Fernando. Poesias nunca
publicadas de Caio Fernando Abreu. Organização Letícia da Costa Chaplin,
Márcia Ivana de Lima e Silva. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.
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