Traço comum
descalço-me de sombras para chegar a ti
as linhas do meu rosto são claríssimas
nelas não vês o velho, a criança, o adulto
vês apenas o traço comum
que é onde eu procuro a tua mão
na transparência da minha palavra inteira
Janeiro
É esta a
completude dos dias
Quando se
reúnem sobre a cidade
Os sossegos
da nossa idade já meiga.
São estas as
palavras que ficam
Desde o
interior do nosso mais antigo nome.
É o inverno
aberto de janeiro
Com as
árvores despidas e o frio azul,
É o ano que
começa no tempo que é nada,
Os bolsos
que se enchem de mãos,
As casas que
parecem mais juntas.
Por esta
altura estarão a nascer
As horas
mais felizes das nossas vidas
- bebemos
chá escutando o lume
E amanhã
será um dia a menos,
Um outro som
acrescentando à voz,
Um abraço
fechando-se até ao amor.
Muito pouca
a morte é
uma coisa muito pouca
em nada se
compara ao crescimento das constelações
a morte não
respira nem se expande desde o centro
como fazem
as estações desde o coração da terra
e assim eu
sei que um sorriso é precioso
porque
respira e alarga-se dentro dos olhos
e quando
chega ao lugar em que a mão se abre
é já uma
forma de sossego uma lua coberta de luar
um modo
certo de trocar nomes em dias de excepção
Um dizer ainda puro
imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.
dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.
diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.
De Um
Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.
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