CONSTELAÇÕES
Usamos todos
a ilusão
de fabricar a vida:
história, constelações
de sons e gestos
de fabricar a vida:
história, constelações
de sons e gestos
Usamos todos
a suprema glória
do amor: por generosidade
ou fantasia, ou nada, que de nada se fazem
universos
do amor: por generosidade
ou fantasia, ou nada, que de nada se fazem
universos
Usamos todos
mil chapéus de bicos
mal recortados e de encontro
ao sol:
o nosso mais perfeito em franja e bico
e um arremedo tal e seicentista
que ofuscando-se: o sol
mal recortados e de encontro
ao sol:
o nosso mais perfeito em franja e bico
e um arremedo tal e seicentista
que ofuscando-se: o sol
Usamos todos
esta condição
de pó de vento, ou de rio
sem pé: único dom de fabricar o tempo
em raiz de palmeira
ou de cipreste
de pó de vento, ou de rio
sem pé: único dom de fabricar o tempo
em raiz de palmeira
ou de cipreste
UMA COISA SEM TÍTULO E APÓCRIFA
Um Moisés
decepado
segurando nos dentes
bordão curto demais
para nascente
decepado
segurando nos dentes
bordão curto demais
para nascente
Um arbusto
tão curto
que o seu fumo crescesse
para logo morrer
e nunca mais
que o seu fumo crescesse
para logo morrer
e nunca mais
Luminosas
partículas de pó,
Abraão sem sequer
a dádiva de
sonho
Abraão sem sequer
a dádiva de
sonho
Espaços de
projecção como em cinema,
partículas de pó iluminadas:
o invisível pó que se respira em vão
em desertos de fé,
salas vazias
partículas de pó iluminadas:
o invisível pó que se respira em vão
em desertos de fé,
salas vazias
E uma coisa
sem título
e apócrifa
nem sequer hora sexta
mas uma
(tão prosaica)
da manhã
e apócrifa
nem sequer hora sexta
mas uma
(tão prosaica)
da manhã
ENCENAÇÕES E QUASE VOOS
Uma luz construída
ilumina
esses santos,
cada um sem o halo,
mas pombo circundante
na cabeça
ilumina
esses santos,
cada um sem o halo,
mas pombo circundante
na cabeça
São quatro santos no cimo
da igreja,
e cada um dos pombos escolheu
a face mais marcada,
os caracóis de pedra
que fossem mais macios
da igreja,
e cada um dos pombos escolheu
a face mais marcada,
os caracóis de pedra
que fossem mais macios
Talvez não sejam santos,
mas apóstolos, tão de barroco,
e o seu gosto a vestir:
um excesso de desvio
quase pecado
mas apóstolos, tão de barroco,
e o seu gosto a vestir:
um excesso de desvio
quase pecado
Apóstolos ou santos,
os pombos circundantes na cabeça
são halos delicados
que, julgando-se em céu,
vêem quase metade da cidade,
a meio: o rio e os telhados
de casas
os pombos circundantes na cabeça
são halos delicados
que, julgando-se em céu,
vêem quase metade da cidade,
a meio: o rio e os telhados
de casas
Fingindo-se de mão a abençoar,
são adereço de um teatro
inteiro:
caos encenado
ou um perfil egípcio
são adereço de um teatro
inteiro:
caos encenado
ou um perfil egípcio
E os caracóis solenes e sombrios
convidam ao pecado
e convocam-me aqui: noite de verão,
a liquidez do olhar:
convidam ao pecado
e convocam-me aqui: noite de verão,
a liquidez do olhar:
Eu não poder,
em pedra,
em pedra,
abrir as asas
•
Ana Luísa Amaral nasceu em Lisboa a 5 de abril de 1956. Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sua vida acadêmica é continuamente irrigada pelo exercício de criação literária; nesta segunda extensão do trabalho destaca-se como poeta. Sua estreia acontece em 1990 com o livro Minha senhora de quê; depois de uma dezena de trabalhos, publica uma reunião da sua obra poética em 2005. Se eu fosse um intervalo é o título de 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário