terça-feira, 15 de setembro de 2015

Três poemas de "O livro das semelhanças", de Ana Martins Marques



[HÁ ESTES DIAS EM QUE PRESSENTIMOS NA CASA]

Há estes dias em que pressentimos na casa
a ruína da casa
e no corpo
a morte do corpo
e no amor
o fim do amor
estes dias
em que tomar o ônibus é no entanto perdê-lo
e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde
não são coisas que se expliquem
apenas são dias em que de repente sabemos
o que sempre soubemos e todos sabem
que a madeira é apenas o que vem logo antes
da cinza
e por mais vidas que tenha
cada gato
é o cadáver de um gato


AMOR NÃO FEITO

No centro do que me lembro ficou
o amor não feito
o que não foi rói o que foi
como a maresia

casa onde não morei país invisitado
praia inacessível avistada do alto
o que fazer do desejo
que não se gastou?

alegria não sentida amor não feito
prazer adiado sine die
palavra recolhida como um cão
vadio gesto interrompido beijo a seco

como parece banal agora
o que o barrou
compromissos decência covardia
não foi nada disso que ficou

mas precioso aceso
e perfeito
restou o desejo do amor
não feito


O QUE EU SEI

Sei poucas coisas sei que ler
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas


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