BRINDE
Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.
Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;
Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde
Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.
BRISA
MARINHA
A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites!
nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!
Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Rompam-se ao vento sobre, os náufragos, sem mas-
Tros, sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!
SANTA
Numa janela vigilante
O sândalo
que se desdoura
De sua viola cintilante
Outrora com flauta ou mandora,
A Santa pálida perante
O velho livro que se escoa
Do Magnificat evolante
Outrora em vésperas e noa:
Na vidraria de ostensório
Que a harpa noturna do Anjo plange
Das suas asas de velório
Para a delicada falange
Com que, sem sândalo afinal
E sem velho livro ela vence-o,
À plumagem instrumental,
Som, a música do silêncio.
*
Uma negra que algum duende mau desperta
Quer dar a uma criança triste acres sabores
E criminosos sob a veste descoberta,
A glutona se apresta a ardilosos labores:
A seu ventre compara alacre duas tetas
E, bem alto, onde a mão não se pode trazer,
Atira o choque obscuro das botinas pretas
Assim como uma língua inábil ao prazer.
Contra aquela nudez tímida de gazela
Que treme, sobre o dorso qual louco elefante
Recostada ela espera e a si mesma zela,
Rindo com dentes inocentes à infante.
E em suas pernas onde a vítima se aninha,
Erguendo sob a crina a pele negra aberta,
Insinua o céu torvo dessa boca experta,
Pálida e rosa como uma concha marinha.
•
Stéphane Mallarmé nasceu a 18 de
março de 1842, em Paris. Sua carreira literária começa com publicações na
revista Le Parnasse Contemporain. Autor de uma vasta e inovadora obra,
se destaca como autor de livros como Um jogo de dados (1897), ponto alto
na ruptura com os modelos tradicionais da poesia, e o volume de ensaios Divagações,
editado também no mesmo ano. Morreu a 9 de setembro de 1898, em Seine-et-Marne.
* Traduções de Augusto de Campos
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