SER LIVRE COMO UMA AVE
Quando o
coração, os pulmões e rins
do fumador
de cachimbo o obrigaram a ir à oficina
uma e outra
vez e cada vez mais, onde ficou,
como mísero
eu, ligado aos tubos
e obrigado a
engolir um crescente montículo
de
comprimidos coloridos, redondos e alongados
que
sussurravam as legendas dos seus efeitos secundários;
quando a
velhice insistente e obstinada lhe colocou
as questões “Quanto
tempo ainda?” e “Valerá mesmo a pena?” e
não lhe
saíam da mão nem imagens traçadas nem palavras
alinhadas;
quando o mundo com as suas guerras e danos
colaterais
se lhe escapou e ele já só o sono buscava,
fragmentado
e aos pedaços – distante já de si e lamuriento,
pôs-se a
lamber as feridas –; quando também a derradeira fonte
tinha já
secado, umedeceu-me, como se ainda
houvesse
aquela respiração direta de boca a boca, o beijo
de uma musa
em atividade subsidiária; e logo surgiram
imagens
acossadas pelas palavras, ficaram à mão o papel
e o lápis e
o pincel e a outonal natureza mostrou
a sua caduca
oferta, fazendo fluir da aquarela a aguada,
e logo me
pus a rabiscar com gozo e, temendo a recaída,
recomecei,
ávido, a viver.
Sentir-me.
Leve como uma pena, livre como uma ave,
se bem que
há muito pronto a ser abatido. Sem vergonha
soltar a trela
ao bicho. Tornar-me neste e naquele.
Ressuscitar
os mortos. Mascarar-me com os trapos
do meu
companheiro Baldanders. Perder-me com toda a
determinação.
Procurar refúgio por detrás dos riscos
do próprio
sombreado. Dizer agora!
Senti-me
como se pudesse mudar de pele, encontrar o fio,
soltar o nó,
como se o achado felicidade tivesse ainda um nome
repetível.
EM RENOVADA FOLHA
Com giz
vermelho, lápis, grafite,
com traço de
tinta e pena de ave,
aparos
afiados, farto pincel
e carvão das
florestas da Sibéria,
com
sobrepostas aguadas de aquarela,
para logo
voltar ao branco e ao negro –
inseridos
numa escala de sombreados –
destacando o
brilho prateado da sombra;
e desde que
do sono já da morte tão próximo
o beijo da
musa me espantou
e nu me
atirou e em pelo para a claridade,
quero, em
sempre renovada folha,
pelo amarelo
obcecado, como que pela luz
de um campo
de colza anestesiado,
tenciono
inflamar o vermelho
e pelo
outono tingido, esperando ainda
que
novamente renasça o verde,
procurar a
saída, suspenso e leve
como penas
que do azul caem.
ORAÇÃO DE TODAS AS NOITES
O que em
criança até à ereção do membro
me assustava
podia ler-se
como lema em
cada muro em Sütterlin:
“Deus tudo
vê”; agora, porém – desde que
Deus está
morto –, descreve lá em cima
os seus
círculos
um drone não
tripulado
que, sem
pestanejar, nunca dorme
e me tem
debaixo d’olho e tudo
armazena e
nada consegue esquecer.
E já de novo
infantil sou
e gaguejo
incompletas preces,
quero
implorar a clemência e o perdão
como outrora
os meus lábios,
à hora de ir
para a cama,
após cada
pecado original,
suplicavam
indulgência.
E no
confessionário ouço-me sussurrar:
Oh, querido
Drone,
torna-me
crente,
ajuda a
salvar
quem mente.
CORREIO DE CARACOL
Escrever
longas cartas a amigos mortos
e breves e
lamentosas à amante
há muito
descarnada,
e outras
legíveis, sem arabescos,
com frases
que meandram aproximadamente,
não,
incisivas, afiadas,
capazes até
de o tempo perfurar,
como se nem
um instante tivesse passado.
Mas também o
evanescente agora
e a pressa e
o tédio
quero como
testemunha apaixonada
pelas
palavras relatar,
descrever o
curso da bolsa,
a geral
atração pela queda,
e no que os
filhos se tornaram, e tornam,
e com
quantos netos fui entretanto brindado,
quais as
palavras que estão na moda
e as que
caíram em desuso e há muito desapareceram.
Oh, que
falta me fazem os amigos mortos
e a amante,
cujo nome perdura ainda
fresco e
infinitamente repetível
no secreto
compartimento.
Por resposta
quero esperar
até que
todas as manhãs o vento
me largue à
porta, densamente preenchidas
e
desordenadas, as folhas do outono.
Também
distingo caracóis
que nas
rotas postais se afadigam,
de muito
longe vêm vindo,
há já anos
que o seu trânsito dura;
e a mim
vejo-me todas as noites
a decifrar
pacientemente
o seu
viscoso rasto
e a ler o
que o amigo morto
e a amante
me escreveram.
* Tradução João
Bouza da Costa
Nenhum comentário:
Postar um comentário