PARA A
FIGURA DE UM CRISTO ACHADA ENTRE O LIXO DE UM ESTÁBULO
Não estavas
nas neves imensas dos montes,
na neve que
ardia em seu silêncio;
nem no
clamor feliz dos nossos gritos
além no mais
profundo dos bosques.
Não te pude
encontrar tal como és
nos versos
da pobreza e da piedade de Rilke,
que lia de
noite à luz da vela;
nem no
Nascimento Místico de Sandro Botticelli,
que, desde
que o vi, não deixa de viajar na minha memória
com sua
coroa de anjos,
como viaja
uma fogueira, e a vai adormecendo;
nem na
tormenta ou na loucura formosa
da ebriedade
de Bach.
Não estavas
na ermida fechada a cal e canto,
calada na
ladeira como lábios dum anjo
por dedo de
silêncio.
Nem estavas
na casa de pedra da aldeia
que, no fim
dos vales, nos deixaram
naquele fim
de semana.
Não estavas
nem sequer no amor
dos meus,
dulcíssima
coroa de
sangue em torno da mesa;
nem naquela
ramagem
de mãos que
estendíamos para o lume aceso.
(A oferenda
de nos amarmos entregue pelas chamas!)
Nem sequer
estavas na hóstia
vermelha que
era a lareira da cozinha.
Tu estavas
fora, por trás da janelita
com musgo e
com orvalho,
por trás dos
objectos mortos da arrecadação,
depois do
horto envolto
em névoa,
por trás dos olhos medrosos,
lastimosos,
da cadela.
Fui entrando
no estábulo
onde há
muitos anos ninguém penetrava.
E não
conseguia perceber por que o fazia.
E na palha
mole e ressequida
do chão, no
lixo morto,
o meu pé
tropeçou em algo.
Era um
pequeno braço de bronze o que assomou,
e nele uma
mãozinha se agarrava
(não sei se
com terror se com doçura)
a um cravo
afiado.
Devagar,
agachei-me para agarrar
o cravo frio
(aquele que eu cria
que
abrasava).
E fui
tirando aquela mão e aquele braço
até que vi
sair (com uma mancha
de sangue
sobre o peito)
a cabeça e o
corpo de um Cristo sem a sua cruz.
Já libertado
do lixo,
aquele corpo
de bronze parecia
tremer sobre
a minha mão
como um
pássaro tíbio.
E contemplei
os seus pés, seus braços estendidos,
cravados na
luz
de ouro do
estábulo.
* Tradução de Ruy Ventura
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