CLANDESTINO
A canção era
assobiada pelo marinheiro na proa
e do vento passou
aos lábios do grumete na despensa
repetindo-se,
mais aguda, até o poente onde uma passageira
a reteve
entre os dedos como um vilão,
deixando-a
flutuar, titubeante,
em busca de
alguém que soubera alçá-la do silêncio que espreitava.
Fui eu quem
veio salvá-la do lago em que se afogava
e a deixei
seguir até o tripulante de boina azul
que agarrado
a um mastro jogava ao urso;
através dele
nasceu outra vez, grave e segura,
e já nada
deteve sua ronda até à popa
onde um
marinheiro de rosto adormecido a susteve um segundo.
(Ai, ai,
ai, ai,
canta e não
chores)
E a deixou
partir, última bolha misturando-se ao pavão furioso da estrela.
Provence,
18/10/57
* Poema encontrado na última página da edição de Mimesis, de Eric Auerbach, publicada em 1950 pelo Fundo de Cultura Econômica.
MENSAGEM A UMA RAINHA
Majestade:
mãos numerosas passeiam
Ao redor de
teu esplêndido palácio
Alimentando-se
de palavras
E cornucópias
de onde saem leis mastigáveis
E fitas
amarelas
Tudo está tão
velho quando nasce!
Por quem és
rainha, por quem jogas
Ao soltar o
macramé de um tempo pegajoso
Enquanto te
pintam unha a unha as cutículas
E os mendigos,
em ação de graças,
Enchem um chapéu
de retalhos manchados
Que o camareiro
te trará entre reverências
Sob a forma
de um Te amamos, Rainha,
Que vivas
muitos Anos, hurra hurra
* Poema encontrado na última página de um folheto de Claude-Edmonde Magny.
•
Julio Cortázar nasceu a 26 de
agosto de 1914 em Ixelles, na Bélgica. Sua obra, uma das mais importantes no
âmbito da literatura latino-americana, se destaca pela inovação criativa e
formal no trato narrativo. Ficou reconhecido pela publicação de vários títulos
em prosa curta, como Histórias de cronópios e famas (1964). Seu livro
mais lembrado é Rayuela (1963). Vez ou outra, se aventurou na poesia, gênero,
aliás, que marcou sua estreia em livro na literatura: em 1938, sob o pseudônimo
de Julio Denis publicou um livro de sonetos intitulado Presencia; quase
quatro décadas mais tarde, em 1971, publica Pameos y meopas e, em 1984, Salvo
el crepúsculo. Cortázar morreu em Paris, onde viveu extensa parte de sua
vida, a 12 de fevereiro de 1984.
** Traduções de Pedro Fernandes.
Maravilhosos pameos Júlio.
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