Não consegui
salvar
nem uma vida
não soube
deter
nem uma bala
então
percorro cemitérios
que não
existem
busco
palavras
que não
existem
corro
para o
socorro não pedido
para o
resgate tardio
quero chegar
a tempo
mesmo que
tarde demais
*
Muranów se
ergue
sobre as
camadas do morrer
a fundação
apoiada em osso
os porões
nas valas
esvaziadas
de gritos
Foi ou não
foi está como está
Há uma
calmaria de gemidos removidos
halo negro
do fogo defunto
Muranów
fortemente plantado
na sepultura
da memória
a maioria
das cartas chega
Foi ou não
foi está como está
E eu como
ele elevado
até a
superfície das cinzas
sob as
estrelas de vidro estilhaçado
Foi ou não
foi está como está
eu queria
apenas calar
mas calando
minto
eu queria
apenas andar
mas andando
pisoteio
CARTA A MARC CHAGALL
I
Que pena que
o senhor não conheceRosa Gold,
a mais
triste rosa dourada.
Ela só tinha
sete anos, quando acabou essa guerra.
Não a vi
nunca,
mas ela não
tira os olhos de mim.
Duas vezes
as neves derreteram sobre aqueles olhos,
duas mil
vezes morreram
os olhos de
seis anos de Rosa Gold.
Meu irmão
saiu de noite, bebeu água de uma poça e morreu. Nós o enterramos no bosque, no
meio da noite. Uma vez o tio saiu do abrigo e nunca mais voltou. Ficamos
escondidos assim 18 meses, até que chegaram os russos. Não sabíamos andar e até
hoje temos pernas fracas. E Rosa está sempre triste, chora com frequência e não
quer brincar com as outras crianças.
Que bom que
o senhor não conhece Rosa Gold!
Explodiriam
em fumaça os cachos de lilases, nos quais deitam os enamorados.
A rabeca do
músico verde lhe cortaria a garganta.
O portão do
cemitério judeu voltaria ao pó
ou sufocaria
no mato de tijolos daninhos.
A tinta
carbonizaria as telas.
Pois o último,
o mais horripilante grito
é sempre
apenas o silêncio.
Que pena que
o senhor não conhece Frycek!
Sua mãe
conseguiu dá-lo à luz um tantinho antes da guerra.
E ele queria
ser um arenque, que tem seu próprio sal
ou uma
mosca, que é livre para zumbir.
Pois lhe era
permitido ser apenas um pouco.
Atrás do
armário, sonhava com cebola,
e como não
iria chorar com sonhos assim?!
Eu ficava
atrás do armário, não jantava. Quando vinha alguém ficava quietinho, nunca saía
ao sol. Me cobria com um edredom cheio de piolhos. Pensei que eu iria ser
sempre assim. Eles falavam que iam viajar para Częstochowa e que
iam me deixar. Queria chorar, mas pensava: e daí, quando eles viajarem vou sair
de trás do armário.
Que bom que
o senhor não conhece Frycek, que atrás do armário fingia ser uma teia de
aranha!
A filhinha
sentada na janela verde.
Por anos
chia o samovar de Vitebsk.
Soltam
fumaça as sonolentas lâmpadas de querosene.
O arenque
alado lá do céu abençoa as feiras.
Enfim, para
que acreditar em Frycek?
Afinal,
Frycek não é Deus.
II
E um dia
chegou a mamãe e me levou para outro apartamento, onde precisava chamar a mamãe
de “senhora” e não podia chamá-la de mamãe.
Às vezes me
esquecia de chamar a mamãe de “senhora” e a mamãe ficava muito nervosa. Mas
para mim era muito difícil me acostumar com isso, era tão duro que de vez em
quando precisava sussurrar no ouvido da mamãe algumas vezes: “Mamãe, mamãe,
mamãe”. E perguntava: “Mamãe, quando a guerra acabar eu vou poder chamar você
em voz alta de – “mamãe”?
Eis os
versículos do Novíssimo Testamento.
Nele seis
milhões de laudas carbonizadas,
e mira-se
nas sobreviventes, faz anos,
o castiçal
vermelho do incêndio.
E há também
o testemunho das coisas.
No espelho
do barbeiro
o terror
barbudo
despertou
círculos cada vez mais amplos, mais amplos,
como na água
verde e triste,
e explodiram
aquele mundo.
Não sobrou
nem o reflexo.
Mandaria
para o senhor, senhor Chagall,
nem que
fosse um pequeno caco do espelho,
mas eles já
estão nas profundezas
do estrato
de uma era morta,
e ao redor
deles a abundância de ossos,
os quais
fazem muita questão
que se
silencie um pouco sobre eles,
os quais
jazem em todos os lugares incógnitos,
e que se
reze por eles
em voz alta
a palavra:
“Mamele”
A criança
tinha muito medo da morte. Se agarrava à mãe e perguntava: “Mamãe, a morte dói
muito?” A mãe chorava e falava: “Não, é bem rapidinho”- e assim as fuzilaram.
E surgiram
novos desertos:
as areias de
Majdanek, Sobibór,
as dunas de
Treblinka e Bełżec[1],
onde o vento
deita para o descanso eterno
não sílica,
mica e arenito –
triturados
na mó dos mares antigos –
mas cálcio e
carbono
da estirpe
humana reduzida a pó.
Eu – ser
humano, eu – filho desta terra,
eu – irmão
não queimado daqueles,
ainda vejo
como o galo do senhor, que ficou cego,
protege as
sobras dos assuntos humanos,
e no último
dia da destruição
se eleva
acima das cinzas.
III
Nos terrenos
dos antigos campos da morte, os bandos de ladrões grassam, procurando o ouro
nas camadas de cinzas que restaram dos prisioneiros queimados.
Na
escuridão, as cinzas
fluem pelas
ampulhetas crivadoras.
E no ar é
assim
como se
respirasse o seu último suspiro.
Às vezes, a
estrela ressuscitada de sob a terra
alumia a
noite:
um dente de
ouro extraído das cinzas.
E então dá
para ver nesse brilho
as mãos dos
antropoides escorrendo vermelho.
Hoje conheci
estas mãos,
embora de
dia estejam limpas como uma hóstia:
batiam
palmas para os trens que passavam,
e nos quais
nos deixaram para sempre
Rosa Gold e
Frycek de detrás do armário,
deixando os
seus mortos.
Creio que
acharão abrigo
e que ainda
os encontrarei
nos recantos
seguros
das cores
oraculares
nos seus
quadros, senhor Chagall.
* Traduções de Piotr Kilanowski. Publicado inicialmente em Qorpus.
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