CASA DA
MISERICÓRDIA
O pai
fuzilado.
Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe, a miséria e a fome,
a instância que alguém lhe escreve à máquina:
Saludo al vencedor, Segundo Año Triunfal,
Solicito a Vuecencia deixar os filhos
nesta Casa da Misericórdia.
Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe, a miséria e a fome,
a instância que alguém lhe escreve à máquina:
Saludo al vencedor, Segundo Año Triunfal,
Solicito a Vuecencia deixar os filhos
nesta Casa da Misericórdia.
O frio do
seu amanhã está numa instância.
Os orfanatos e hospícios eram duros,
mas ainda mais dura era a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, tem de ser cruel.
Não há mais nada. A poesia é agora
a última casa da misericórdia.
Os orfanatos e hospícios eram duros,
mas ainda mais dura era a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, tem de ser cruel.
Não há mais nada. A poesia é agora
a última casa da misericórdia.
SATURNO
Rasgaste os
meus livros de poemas
e deitaste-os para a rua pela janela.
As folhas, como estranhas borboletas,
iam pairando por cima das pessoas.
Não sei se agora nos entenderíamos,
dois homens velhos, cansados e desiludidos.
De certeza que não. Deixemo-lo assim.
Tu querias devorar-me. Eu, matar-te.
Eu, o filho que tiveste durante a guerra.
e deitaste-os para a rua pela janela.
As folhas, como estranhas borboletas,
iam pairando por cima das pessoas.
Não sei se agora nos entenderíamos,
dois homens velhos, cansados e desiludidos.
De certeza que não. Deixemo-lo assim.
Tu querias devorar-me. Eu, matar-te.
Eu, o filho que tiveste durante a guerra.
VOZES DE
CRIANÇAS
O amanhã nos
meus olhos é de um cinzento triste,
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.
O SAPATEIRO
Costumávamos
jogar ali à bola.
A praça da igreja erguia-se
uns dois metros acima de umas pequenas hortas
que estavam ao lado de um sapateiro.
Quando a bola caía, algum dos nossos
tinha de ir rápido dependurando-se.
Se o sapateiro chegava lá antes,
cortava-a com o seu cutelo.
Não sei que pescoço cortava na bola
de borracha daquelas crianças. Dava-me medo.
Um medo que já não era o mesmo
que o dos contos ou do quarto escuro.
Era um medo mais duro. Mais real.
Como quando tu estavas com outro,
ou quando morreu a nossa filha.
A praça da igreja erguia-se
uns dois metros acima de umas pequenas hortas
que estavam ao lado de um sapateiro.
Quando a bola caía, algum dos nossos
tinha de ir rápido dependurando-se.
Se o sapateiro chegava lá antes,
cortava-a com o seu cutelo.
Não sei que pescoço cortava na bola
de borracha daquelas crianças. Dava-me medo.
Um medo que já não era o mesmo
que o dos contos ou do quarto escuro.
Era um medo mais duro. Mais real.
Como quando tu estavas com outro,
ou quando morreu a nossa filha.
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Joan Margarit i Consarnau nasceu a 11 de maio de 1938 em Sanaüja (Segarra, Catalunha). Viveu a infância e adolescência entre Barcelona, Rubí, Figueres, Girona e Tenerife. Formou-se em arquitetura e fez carreira acadêmica na Escola Técnica Superior de Arquitetura em Barcelona. Autor de vasta obra, sua poesia foi organizada em 2020 em Tots els poemes (1975-2017). Ao longo de sua carreira acumulou vários prêmios, entre eles o Prêmio Ibero-americano de Poesia (2017), o Prêmio Reina Sofía de Poesia (2019) e o Prêmio Cervantes (2019). Joan Margarit morreu a 16 de fevereiro de 2021.
* Traduções Rita Custódio e Àlex Tarradellas
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