segunda-feira, 28 de maio de 2018

Dois poemas de Victor Heringer


TROTE TELEFÔNICO
Vanitas

Minha tia solteira
num momento qualquer da vida
foi telefonista.

Comprou uma casa, comprou quintal,
faz compras só pra uma.

Minha tia solteira
não deu ouvidos ao vaivém dos plugues
e suas promessas casamenteiras
(sempre alô, sim, alô, sim, alô,
sim, senhor - isso
nunca).
Hoje fica vermelha
quando põe coisas na tomada.

Hoje quase chora
na presença de aparelhos sem fio
e briga comigo
porque não tenho o nome na lista telefônica.

De vez em quando me liga
e diz que ficou pra titia.


UM PRESENTE

Desfaz a hipermetropia dos seus dentes.
Corrige as ondas longitudinais da língua.
Para a melhor saúde refracional da sua boca
(e de toda a sua família)
- anunciam os anunciantes,
que agora vendem lentes fotográficas sem o corpo da máquina.
O corpo é você.

Basta aproximar muito os lábios, morder
e está posta a máscara de vidro. Faz maravilha:
objetiva a voz, justifica o olho, sussurra manso,
adora Michelangelo, acha as ruas, engole o choro.

Uma graça. E sem data de validade.

E o avançadíssimo mecanismo de encaixe?
De assombrar:
sempre vem na mordedura exata. Como?
Tiraram as medidas da sua boca
enquanto bocejava.


Victor Heringer nasceu no Rio de Janeiro, em 1988. Escreveu Automatógrafo (poesia), Glória e O amor dos homens avulsos (romance). Em 2013 recebeu o Prêmio Jabuti por seu primeiro romance e em 2017 foi finalista do Prêmio Oceanos pelo segundo. Morreu em 2018.


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