A MÁGOA
Os telhados
sujos a sobrevoar
Arrastas no
voo a asa partida
Acima da
igreja as ondas do sino
Te rejeitam
ofegante na areia
O abraço não
podes mais suportar
Amor
estreita asa doente
Sais gritando
pelos ares em horror
Sangue escoa
pela chaminé
Foge foge
para o espanto da solidão
Pousa na rocha
Estende o
ser ferido que em teu corpo se aninhou.
Tua asa mais
inocente foi atingida.
Mas a Cidade
te fascina.
Insistes
lúgubre em brancura
Carregando o
que se tornou mais precioso
Voas sobre
os tetos em ronda de urubu
Asa pesa pálida
na noite descida
Em pálido pavor
Sobrevoas persistente
a Cidade Fortificada escurecida
Capela ponte
cemitério loja fechada
Parque morto
floresta adormecida.
Folha de
jornal voa em rua esquecida.
Que silêncio
na torre quadrada.
Espreitas a
fortaleza inalcançada.
Não desças
Não finjas
que não dói mais
Inútil negar
asa partida
Arcanjo abatido,
não tens onde pousar
Foge,
assombro, inda é tempo
Desdobra em
esforço a ala confrangida
Foge! Dá à ferida
a sua medida
Mergulha tua
asa no mar.
O MENINO
Para além da
orelha existe um som
À extremidade
do olhar um aspecto
À orla do sopro
exaurido o ar
Às pontas
dos dedos um objeto
É para lá
que eu vou.
À ponta do
lápis o traço.
Onde expira
o pensamento está uma ideia
Ao derradeiro
hálito de alegria uma alegria
À beira das
badaladas um silêncio
À ponta da
espada a magia
É para lá
que eu vou.
À ponta dos
pés o salto.
Parece a
história de um menino
Que foi e não
voltou.
É para lá
que eu vou.
•
Clarice Lispector
nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Chechelnyk, Ucrânia e morreu em 9 de
dezembro de 1977, no Rio de Janeiro. Autora
de obras fundamentais da literatura brasileira pós-anos 1930, como A paixão segundo G. H. e A hora da estrela, nunca se dedicou ao
ofício da poesia, embora tenha publicado nas mais variadas formas de escrita – conto,
crônica, entrevistas etc. Os dois poemas apresentados aqui foram publicados na
década de 1940 em O jornal e
posteriormente transformados em prosa, integrando, respectivamente, a crônica “A
mágoa imortal” e o conto “É para lá que eu vou”.
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