o que fica da memória
o que fica da memória é um olho a
piscar
o que fica da memória
gene que sobrevive ao tempo
momento único de uma década
sem testemunhas
certa frase entrecortada
perdura
gesto sobreposto em camadas de tempo
o buraco funerário do coelho
em fuga
um chapéu de bom feltro
a mão de setenta e seis anos nele pousada
alisa
a quilha hábil
moldada pelo século XIX
o que fica da memória
sobrevive
a doenças e quedas
entrou por algum poro da mente
ali ficou reclinado
acorda sob a luz de uma palavra
ergue-se à vibração de uma árvore interior
estava ali desde sempre
e nós em paz porque existia
silencioso
atento
era um ramo pousado no ombro do tempo
agitou-se
estendeu um braço de dentro do braço
amiba bocejante
um pseudo-braço
para sobrevivência instantânea
o que resta da memória é um
pseudópode
vindo da periferia obscura
brilha como a múmia no museu deserto
do bairro degradado
depois volta a sair pela esquerda baixa
deixando atrás de si a memória desta memória
a reverberar
até se diluir em pó brilhante
lento
caindo a pique
na água cada vez mais escura dos dias
cactus
eis a palavra coágulo
impressa na página ininterrupta
será acentuação esdrúxula
o pingo de aço e sangue
dentro dela
a parede branca do verão
brilha sob o peso da luz única
do sul
(ah, já se sabe...
o sal o sol o sul)
as cigarras nas suas árias
de contratenores extraterrestres
o moscardo agridoce do verão
cego sobre o lajedo
irreversível, o meu verão
um verão sem retorno
pressinto eu que
não acredito no futuro
gene que sobrevive ao tempo
momento único de uma década
sem testemunhas
certa frase entrecortada
perdura
gesto sobreposto em camadas de tempo
o buraco funerário do coelho
em fuga
um chapéu de bom feltro
a mão de setenta e seis anos nele pousada
alisa
a quilha hábil
moldada pelo século XIX
sobrevive
a doenças e quedas
entrou por algum poro da mente
ali ficou reclinado
acorda sob a luz de uma palavra
ergue-se à vibração de uma árvore interior
e nós em paz porque existia
silencioso
atento
era um ramo pousado no ombro do tempo
agitou-se
estendeu um braço de dentro do braço
amiba bocejante
um pseudo-braço
para sobrevivência instantânea
vindo da periferia obscura
brilha como a múmia no museu deserto
do bairro degradado
depois volta a sair pela esquerda baixa
deixando atrás de si a memória desta memória
a reverberar
até se diluir em pó brilhante
lento
caindo a pique
na água cada vez mais escura dos dias
impressa na página ininterrupta
o pingo de aço e sangue
dentro dela
brilha sob o peso da luz única
do sul
o sal o sol o sul)
de contratenores extraterrestres
cego sobre o lajedo
pressinto eu que
não acredito no futuro
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Rosa Oliveira nasceu em Viseu,
Portugal, em 1958. É autora de livros de ensaios e publicou seu primeiro trabalho
com poesia em 2013, o livro Cinza. Depois vieram Tardio (2017) e Errático
(2020).
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