terça-feira, 25 de agosto de 2020

Dois poemas de Rosa Oliveira

 


o que fica da memória
 
o que fica da memória é um olho a piscar
 
o que fica da memória
gene que sobrevive ao tempo
momento único de uma década
sem testemunhas
certa frase entrecortada
perdura
gesto sobreposto em camadas de tempo
o buraco funerário do coelho
em fuga
um chapéu de bom feltro
a mão de setenta e seis anos nele pousada
alisa
a quilha hábil
moldada pelo século XIX
 
o que fica da memória
sobrevive
a doenças e quedas
entrou por algum poro da mente
ali ficou reclinado
acorda sob a luz de uma palavra
ergue-se à vibração de uma árvore interior
 
estava ali desde sempre
e nós em paz porque existia
silencioso
atento
era um ramo pousado no ombro do tempo
agitou-se
estendeu um braço de dentro do braço
amiba bocejante
um pseudo-braço
para sobrevivência instantânea
 
o que resta da memória é um pseudópode
vindo da periferia obscura
brilha como a múmia no museu deserto
do bairro degradado
depois volta a sair pela esquerda baixa
deixando atrás de si a memória desta memória
a reverberar
até se diluir em pó brilhante
lento
caindo a pique
na água cada vez mais escura dos dias
 
 
cactus
 
eis a palavra coágulo
impressa na página ininterrupta
 
será acentuação esdrúxula
o pingo de aço e sangue
dentro dela
 
a parede branca do verão
brilha sob o peso da luz única
do sul
 
(ah, já se sabe...
o sal o sol o sul)
 
as cigarras nas suas árias
de contratenores extraterrestres
 
o moscardo agridoce do verão
cego sobre o lajedo
 
irreversível, o meu verão
 
um verão sem retorno
pressinto eu que
não acredito no futuro
 
Rosa Oliveira nasceu em Viseu, Portugal, em 1958. É autora de livros de ensaios e publicou seu primeiro trabalho com poesia em 2013, o livro Cinza. Depois vieram Tardio (2017) e Errático (2020).

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