terça-feira, 11 de agosto de 2020

Um poema de João Vário


 

CANTO PRIMEIRO
 
Da morte nos ficou esse dom de a pensarmos
como coisa sua, coisa por que a pensamos
e acaso não a exprime, porque a designamos.
E enquanto instituímos os signos
e nos louvamos nos mortos imortais,
volve ao seu absoluto o que pensáramos
de tanto nos serem eles alheios
e nos preferirem.
Para o que há sido o modo, a qualidade
de uma infinita aparição
ou o que há de exílio no exemplo que a dissemina,
decidem a tradição e a carência
a espécie de facilidade que rememoraremos.
Sobretudo, decidem quando devemos morrer
para pagar
a legitimidade ou o que há sido anomalia.
 

 
Porque alegrarmo-nos na nossa obra
é a parte que nos cabe,
pois quem nos fará voltar
para ver o que será depois de nós?
Perigosa ligação do tempo à coisa sua,
em que jamais é tempo, mas hermética coisa,
ou coisa de coisa imortal.
Porque sonhamos é que se sabe que morremos.
Alma ou nem alma, porém em nossa alma e tempo de criaturas.
E memória, memórias
como salário ou cântaros de sacrifício,
humanas razões de censura e audiência,
e o auxílio, o prazo grande, a possibilidade.
Trata-se bem do tempo em que a tarefa
não é já da morte ou do tempo,
mas do discurso dos erros, o relógio e o sangue não sendo já
instrumentos ou rumos ou rodeios.
 
Malícia e rancor,
espera e promessa.
O pecado, o orgulho, a luxúria,
o pecado, a inveja, o pecado,
o suor e o esforço, a convicção e o êxito,
a calúnia, a lassidão, a piedade,
e a fadiga, a exaltação, o elogio, a fadiga e a calúnia.
 
E sobretudo a sede, a fome, a saciedade ou a insatisfação,
os órgãos e a religião de intuirmo-nos:
os vinhos e os pactos que adoptamos
pelos trinta dinheiros de festa à fidelidade.
 

 
Ao começo do crepúsculo e do refúgio,
a separação, o isolamento, o recurso,
a abominação, a autoridade e o remorso,
e o bem precioso, a misericórdia e o suplício
com que os dias assegurávamos,
procurando a igreja, o agradecimento e a miséria,
ao começo do remorso,
do isolamento, da abominação e do recurso.
 
E diz-se que há ofegantes vinhos
sobre o corpo que morre, porque é do seu corpo.
Nem mortais, ou morrendo, é assim
que nos doemos, doa embora primeiro
o olvido em nosso sentido.
O que chamamos tudo é apenas desconfiança e perigo
da totalidade. Ou seu uso, ou sua fortuna,
ou sua ruína. Por isso, em dias úteis e domingos,
com a hipótese, à direita,
e, a meio do pão, como prova de estar só, a reminiscência,
sem escândalo, vaticinemos,
vaticinemos à esquerda, porque a esquerda
é a via dos favores, da graça, do costume e do convite,
vaticinemos porque nada foi mudado
como valores de abominação e de novembro,
e a nossa sabedoria é a mesma, porque não é a mesma,
e nesse lugar, nessa época, a essa hora da maturidade,
é sábado no início do sangue.
Dimenticate, o figli, le nuvole di sangue
salite dalla terra, dimenticate i padri:
This is the time of tension between dying and birth.
Qui sut jamais notre âge et sut notre nom d’homme?
 
Ah! e vem o tempo, tempo porque sobre ele errávamos,
ou tempo porque o diziam os por menos.
(Pois morreremos, como sabemos, ao começo
da leitura dos restos do escândalo, sem
a semana do mundo, tal há os que menos bebem,
sem eles bebendo, porque menos bebem.
A oração fúnebre, a retórica dos homens
erguer-nos-ão essas orquestrações
de rícino sobre o sexo, e diz ele, diz ele:
este é o mais harmonioso
dos amores, oh o mais harmonioso!
 
Efectivamente, sentaram-se e falaram
os bíblicos narradores: São João, São Lucas,
Ezequiel, Isaías, Daniel... ah mas não há imortalidade
que não se finja superior a nós. E
quem, pois, os há-de absolver, aos heterodoxos,
se for este o mais detestável dos amores?
 
Sentados no chão, aguardando a epístola de Pound,
na noite de quinta para sexta-feira,
vê-los-emos passar
– e é este o tempo de testar.
 
Passam sem veemência, inúteis,
– passam, segundo São Mateus,
e quem louva, quem louva estes mortos
ao longo destes caminhos para barlavento?)
 
E abrimos o cesto dos assombros:
É óbolo ou audiência implícita?
Padece ali, por outra identidade padece,
e assim não padece seu novo sentimento.
Saber-se mais que só, ausente, humano
por assiduidade e assombro e pão.
 

 
Homem, onde teu maduro espaço, teu lírico corpo?
Lentamente, Lázaro emerge das trevas.
O espírito vela sob a espessura da vocação
que levanta.
 
Pois assim da morte nos ficou a fadiga e o mérito
com que acontece, como uma morte, connosco, a maturidade.
E embora caiba no sono que tenhamos com outro rosto
o que aqui está escrito com deus,
com ele este mesmo rosto é o que esteve já com outras coisas.
Não as coisas que não sabemos, mas as que ele não sabe
e vão e vêm por muito tempo.
(Por muito tempo diremos ainda
o que aprendemos
por mera conivência com a morte.)
 
Ah! geralmente é óbvio o que é bastante
para morrer no corpo. No corpo
ou em menos audiência que não sabemos?
Tal ou tanto votivo privilégio
que é corpo, letra ou núpcias que é corpo,
ou argumento, sentença, esponsais, ou raça, emulação, cerimónia
e sobretudo pública letra do que morre, ou letra
de que se lembra para não morrer, alto argumento, tanto ou tal
sentença sua, seus esponsais, sua raça,
tal ou tanto, ou alegria de que morremos
como quem se evade para melhor morrer ou não morrer melhor
e no templo sua voz ou sua pública silhueta distinguir
e é um estar consigo melhor que estar só consigo ou estando. Tanto
ou tal estar connosco é saber que estamos impunes.
Todos os óleos se utilizam como linguagem
ou pobreza da morte, morte à saída do sacrifício,
morte ou morte, morte sempre, morte a esmo, maio.
E a inveja, o pretexto, a expiação, o acordo,
a aliança, e a recompensa que celebra
a passagem do espírito a outras tarefas, a outros oráculos,
a surpresa, o aborrecimento, o esquecimento e a inveja.
 
Finalmente, o amor não basta.
Aceite-se que pensar a vida
não traduz o pudor de ter alma.
(A solidão e ele, que o retêm,
homem em seu correcto hábito
de merecer a intensidade em que se designa,
porque morrer é perder a impunidade.)
Mas como chorar os mortos
com João ainda em Patmos?
 

 
Sidos e sendo, ignorando o tempo, sidos ou sendo,
porque o dom é este e não é solidão.
Como o que vem para nos matar,
a solidão é uma brusca posteridade.
Sidos ou sendo e não é solidão.
É a solidão ou narrá-la o que decide?
 
Dizer o corpo como súbito dilúvio.
O espírito, não a alma, tudo devasta.
Lírico pão, íntima unidade,
as dádivas surgem, surgem de vãs,
e vamos obliterando a sua culpa.
 
Porque de tudo nos ficou esse dom de não o sentir,
de ficar com ele só quanto seja
a coisa que não rememoramos.
(Agora o tempo cresce sem facto,
de memória ou com tempo a menos,
qual um vago luxo em que a morte não sabe já
que cooperamos com ela.
O tempo cresce sem resto: cremos que se trata
de negar que cresça,
memória e desmemória!)
 
Porque de ser modo tal, ou tal tempo, ou tal
celebridade, de ser tal, o rosto, as gestações,
a velhice, a impaciência, a disputa, o auxílio,
o confronto e o desassossego,
o insulto e a surpresa, a revolta e o medo,
porque de ser modo tal, ou tal tempo, ou tal
celeridade, unívoco é o tempo,
e excelente a virtude de morrer
para ser dele ou mais amá-lo.
Ele esquece então que o dizemos
e com outra hesitação averigua
porque nos calámos
e o que fizemos da paz sua. Tal
a paz é sua, de sua casa, de seu diário aumento
e de seu clássico sangue. E
cedo diremos o que ele diz
sem o dizer para sermos dele, ou dizendo-o,
e tal é a morte,
e tal não é morrer melhor ou tal é uma morte melhor,
tempo certo, tempo outro, tempo amplíssimo e tempo grande.
 
E enquanto a realidade é nosso exclusivo utensílio,
a tentação e o relógio recordaremos
com que do deus ao outono que o indaga
a morte não é já essa elegia,
mas ceia para aquele de nós que não morrer
na cruz, como todo aquele que morre
porque não morre para testar ou remir
mas morre porque não é todo o desígnio,
à direita e à esquerda.
Porque da morte nos ficou esse dom de a pensarmos
como coisa sua, coisa por que a pensamos
e acaso não a exprime, porque a designamos.
 
 
João Vário nasceu em Mindelo, São Vicente a 7 de junho de 1937 e viveu aí até sua morte a 7 de agosto de 2007. Formado em medicina pelas universidades de Coimbra e de Lisboa e doutorado na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde atuou com professor e pesquisador nas áreas de neuropatologia e neurobiologia, Vário é autor de uma obra poética extensa, profundamente marcada por alguns marcos referenciais da literatura moderna ocidental, tis como T. S. Eliot e Ezra Pound. Sua estreia na literatura foi em 1966 com os Exemplos geral; a este título seguiram-se outros como, Relativo (1968), Dúbio (1975), Próprio (1980), Precário (1981), Maior (1985), Restreint (1989), Irréversible (1989), Coevo (1998) ― todos reunidos na antologia Exemplos 1-9.

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